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Gritos de hoje, de ontem e…

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Nessa semana, andando pela cidade de São Paulo, paro num semáforo. Enquanto olho para o sinal vermelho ouço palavras misturadas e gritadas, e do que consigo entender, frases soltas se repetem: “De tanto medo de morrer fiquei com medo de viver. Eu quero minha alma de volta. Devolvam minha alma”.

Olhei pelo canto do olho e vi que se tratava de um senhor, talvez por volta de seus 50 e poucos anos, maltrapilho, desses homens de rua que cruzamos o tempo todo, e de tanto encontrá-los vamos ficando indiferentes. Ignoramos, em geral, suas solicitações, suas condições, e irritados e/ou assustados, nos afastamos.

Contudo, aquela fala ficou ecoando em mim. Em meio às suas perturbações psicológicas aquele homem tinha uma lucidez estranha de sua situação, uma vez que lucidez encontra-se quase em extinção. Ele, com um rádio antigo na mão e um pedaço curto de pau (simbolizando um microfone), gritava sua angústia e repartia sua realidade.

Por um lado pergunto-me: quem ouve esse gemido? Andamos tão apressados, tão ensimesmados que gritos de fora somam-se aos gritos de dentro e, por não aguentarmos tanto ruído, nos perdemos em afazeres sem fim.

Por outro lado, penso que aquela aflição, gritada em desespero, retrata a nossa realidade. Assim como aquele homem, já com pouca ou nenhuma referência de sua própria dignidade, ora se perde em pensamentos desconexos, ora compreende e coloca acertadamente em palavras o que se passa do lado de dentro. Alguns poucos conseguem expressar-se tão verdadeiramente bem, assumindo seus medos e consequências, repartindo suas fragilidades e expondo debilidades. Muitos escondem-se atrás de máscaras, funcionam bancando aparência de fortaleza e sabedoria, mas, sofrendo horrores que não nomeiam. Optam pelo orgulho de manter-se em pé, mas interiormente estão prostrados pelo medo, onde a alma perdeu-se.

Os evangelhos registram a história de um homem de rua, um cego, que vivia à beira do caminho. Limitado por suas condições, pedia esmolas. Essa era sua vida, assumir suas limitações e brigar por ela.  Mas, certo dia, começou também a gritar. Seu grito não foi ignorado. Entretanto, para a maioria o incômodo era pior do que suas condições, então, o mandavam se calar. Mas, ele não só insistia como começou a gritar mais alto ainda: “Filho de Davi, tem misericórdia de mim!” (Mc 10.48). Jesus, que por ali passava, parou e pediu para o chamarem. E assim que ele se aproximou Jesus lhe pergunta: “O que você quer que eu lhe faça?”. Não era evidente? Por que essa pergunta? É impressionante o número de coisas supostamente sabidas, mas pouco assumidas. Em nós, seres de desejos e de gula, fica confuso o que realmente queremos ao gritarmos, e até mesmo o que queremos de Deus.

Nós, não pouca vezes, achamo-nos organizados, bons em articulações, fazendo ligações aqui e ali, associações variadas, pronunciando-nos sobre tantos assuntos até com alguma distinção e clareza, porém, cegos para nossa real necessidade.

O cego que buscou Jesus respondeu: “Mestre, eu quero ver!” (Mc 10.51). Ele não pediu para ter um dia de boas esmolas, não pediu para ter um bom cão-guia, não pediu para desfrutar de uma refeição única, enfim, não desperdiçou a oportunidade.  Era cego, mas não era estúpido. E a pergunta de Jesus o ajudou a ter consciência clara de sua necessidade prioritária. Sim, boas perguntas podem nos provocar e nos organizar interiormente.

Aquele homem foi atendido em seu gemido. O homem que encontrei essa semana não sei se já foi. Mas pedi a Deus por ele, pedi a Deus por mim. Ele me ajudou a lembrar de angústias não nomeadas, de medos devastadores, de não perder a alma em meio à confusão, de minha própria cegueira. Então, também clamei…“Filho de Davi, tem misericórdia de mim, tem misericórdia daqueles que dão seu jeito de serem ouvidos e não desistem mesmo quando reprimidos e discriminados, tem misericórdia dos corajosos que se apresentam!”

E é bom saber que Jesus nos ouve, nos chama, mas, o que já discernimos da vida?

05ª semana de 2013

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“Ler foi a coisa mais importante que aprendi. Nada gera conformismo como o entretenimento barato. Podem dizer que a cultura se democratizou, que deixou de ser elitista, mas é um processo que gera conformismo.”
Vargas Llosa, “Folha de S.Paulo” – 28/01/2013

“As tragédias acontecem sempre: aviões caem, ‘titanics’ afundam, mas sempre há uma tragédia não percebida entre nós, melhor, uma série de erros não anunciados que acabam desembocando na catástrofe de Santa Maria. Uma das piores do mundo. Mais um horror talvez evitável. Mas o defeito principal do País talvez seja a displicência, irmã da eterna incompetência que nos aflige desde a colônia. São as tragédias em gestação. Os problemas só surgem quando não há mais solução. Vejam os jornais, onde as notícias são sobre coisas que não deram certo, erros de cálculo, obras inacabadas, preços superfaturados, uma lista diária de fracassos, do que poderia ter sido e não foi. Ou então a inocência eterna: ninguém sabe de nada, ninguém pecou, ninguém roubou nunca. […] O dia a dia é assolado pela mediocridade e falta de amor pelos empreendimentos realizados. Interessa sempre o lucro pelo menor gasto possível. […] Aos poucos, nos esqueceremos dessa desgraça a mais. Outras virão. Só nos resta dizer mais uma vez: “Que horror!” e continuar a vida, hoje em dia feita de pressa, medo e suspense, num país onde o óbvio nunca é feito: só as desnecessidades”
Arnaldo Jabor, “O Estado de S.Paulo” – 29/01/2013

“Após uma tragédia como a de Santa Maria, a vontade de agir é irrefreável. Nas próximas semanas, Estados e municípios atualizarão suas normas de segurança anti-incêndio e apertarão a fiscalização sobre todo tipo de estabelecimento. Trata-se, é claro, de um efeito transitório. Com o tempo, o ímpeto vigilante arrefece e as coisas voltam mais ou menos ao que eram antes. E não adianta muito maldizer a leniência das autoridades brasileiras. Ainda que em diferentes graus, o fenômeno é universal e tem origem nos mecanismos pelos quais percebemos o perigo. A pergunta é se devemos aceitar essa abordagem intuitiva ou se seria preferível buscar uma visão mais racional, recorrendo à análise de risco e a especialistas antes de agir.”
Hélio Schwartsman, “Folha de S.Paulo” – 29/01/2013

“O desvio de recursos, a pura irresponsabilidade, a garantia da impunidade. Somos ineptos para minimizar danos das cheias, impedir desabamentos, prevenir incêndios. Mas numa coisa ninguém nos supera: em solidariedade. Instaurada a tragédia, acorremos ao local em batalhões, confortamos os parentes, acolhemos em nossa casa, doamos sangue e enchemos caminhões com donativos, embora não possamos garantir que cheguem ao destino. Nossa humanidade não está em questão – nossa eficiência, sim. E, quando a tragédia se repete, não será por que não avisamos – apenas ninguém tomou providências.”
Ruy Castro, “Folha de S.Paulo” – 30/01/2013

“Esperar sem esperança é a pior maldição que pode cair sobre um povo. A esperança não se inventa, constrói-se com alternativas à situação presente.”
Boaventura de Sousa Santos, “Folha de S.Paulo” – 30/01/2013

“Silas Malafaia não exige doações. À GQ, o pastor alerta: se alguém hesitar em colaborar, ‘Deus fará outro se levantar… e sua benção irá para este outro’. Logo depois, contemporiza: ‘Se R$ 100,00 é tudo o que você precisa, é seu sonho, não dê! Se não for, é sua semente’.”
“O Estado de S.Paulo” – 30/01/2013

“Não estou aqui para ensinar a fazer filmes hollywoodianos. É preciso originalidade. Se existisse apenas o ponto de vista americano, o mundo seria brutal e individualista. Se você possui talento, nada vale mais que se expressar “.
Robert McKee, um dos professores de roteiro mais conhecidos de Hollywood, “Valor” – 01/02/2013

“Henri Matisse confessou sua necessidade de solidão em 1939. ‘Eu gostaria de viver como um monge numa cela, desde que pudesse pintar sem preocupações nem incômodos’. Preocupações e incômodos houve aos montes durante a carreira atormentada do pintor francês.[…] ‘A pintura foi para ele um trabalho desenvolvido em toda a vida. Ele se esforçou por décadas para retratar diretamente o que via. Clichês, preconceitos e suposições, barreiras visuais consideradas seus piores inimigos, foram suprimidos em horas intermináveis de treinamento. A sua disciplina se parecia com a de um pianista’, diz Hilary Spurling, autora de ‘Matisse, Uma Vida’. […] ‘Matisse: In Search of True Painting’ fala do sofrimento do pintor, também relatado por Hilary Spurling, em relação às suas escolhas artísticas. ‘Ele não tinha certeza do seu caminho’. Ou nas palavras do próprio artista: ‘Trabalho sem teoria. Eu sou determinado por uma ideia que só começo a entrever à medida que a pintura se desenvolve’. Incompreendido, Matisse contemporizava.”
Francisco Quinteiro Pires ,“Valor” – 01/02/2013

“A memória é um mistério, às vezes as lembranças aparecem com nitidez, outras vezes ficam guardadas, teimosamente escondidas, ou em estado de latência. […] Só me resta o silêncio, nossa voz essencial, talvez a mais verdadeira.”
Milton Hatoum, “O Estado de S.Paulo” – 01/02/2013

“Meu gospel é bem brasileiro. Não saí copiando, sou a Baby, tenho meu lado rock, meu lado pop. O gospel que toca no rádio e na televisão aqui é muito cru, não dá pra comparar com a nossa música. Nunca fiz isso pra vender CD, mas por paixão”.
Baby do Brasil, “O Estado de S.Paulo” – 02/02/2013

A lágrima cai

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Nosso país está em luto pela tragédia em Santa Maria/RS. Por enquanto, foram contabilizados 235 mortos. Uma cidade em prantos, famílias desnorteadas pela dor, e o luto se instala numa dimensão avassaladora em muitos. Familiares e amigos choram seus queridos. Até os que ajudam com o cumprimento de seu trabalho, como coveiros e taxistas, encontram-se abalados e buscam ajuda no núcleo psicológico de emergência que foi criado após o incidente. Um enorme sofrimento sobreveio de uma só vez a muitos compatriotas.
O rabino Abraham Heschel dizia que “nossa compreensão da profundidade do sofrimento é comparável ao que é capaz de perceber uma mariposa voando sobre o Grand Canyon”. Será isso mesmo? O que compreendemos a respeito do sofrimento? Como o amor cristão nos conduz em tempos de profunda dor? A fé cristã nos ensina a respeito, nos educa a alma?
Lembro-me da pergunta de Jesus a seus discípulos: “Podem vocês beber o cálice que eu vou beber?’ (Mt.20.22). Me parece que Jesus, ao reconhecer nossa falta de noção, nos faz essa pergunta-convite, a fim de que prestemos atenção para o quanto nossos desejos adoecidos tomam lugar da realidade. Nossa insensibilidade nos faz pedir coisas inadequadas, sem perceber o que acontece ao nosso redor. Nem percebemos que na busca de nosso conforto, de reconhecimentos, ignoramos o que se passa com nosso próximo. O que de fato está acontecendo? Somos atraídos por ilusões, apegados a muletas emocionais (onde nos apoiamos em coisas como dinheiro, suposto poder, suposto saber, etc.).
A pergunta de Jesus ecoa, chegando até nós hoje. E aí aproveito o comentário de Henri Nouwen a respeito desse texto: “Beber o cálice não é simplesmente nos adaptar a uma situação ruim ou tentar usá-la o melhor que pudermos. É uma forma de viver com esperança, coragem e confiança. Isso significa ficar de pé com a cabeça erguida, solidamente enraizado no conhecimento de quem somos, encarar a realidade que nos rodeia e responder a ela com nossos corações”. Sim, talvez atentar para a razão das nossas lágrimas seja uma forma de nos conhecermos melhor. Inclusive, perceber como o evangelho nos transforma, aprofundar como o evangelho nos faz solidários, arranca medos e desconfianças a fim de que o amor ganhe mais espaço dentro de nós, então, vamos aprendendo mais a respeito de estender as mãos para acolher do que agredir, mais sobre abraçar do que competir, mais sobre respeitar do que caluniar, mais sobre chorar com os que choram do que tripudiar em cima das dores do próximo, celebrar com os que se alegram do que invejá-los, e por aí vai.
Vivemos assustados, tentando nos proteger continuamente, correndo atrás do vento, nos apegando a desejos infantis. A dor pouco nos comove, ou, nos perturba intensamente, porém, apenas por alguns instantes e logo nos dispersamos nos muitos afazeres e estímulos que nos cercam.
A necessidade imperiosa de nos distrairmos, fugirmos do tédio, da tristeza, corrermos para o divertimento e prazeres, não termos contato com a dura realidade de muitos que nos cercam denúncia que nossas lágrimas acabam sendo somente por nós mesmos.
“Não deem espaço para o ego à custa da sua alma” (I Pe 2.11 – “A Mensagem”).

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