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Espiritualidade e Natureza

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Em meio ao caos e profunda angústia, um aflito ora, lembrando quem é esse Deus a quem clama: “No princípio firmaste os fundamentos da terra e os céus são obras das tuas mãos” (Sl 102.25).

Um Deus criador e uma criatura que vai se tornando cada vez mais perigosa pelas escolhas que faz. Ao que tudo indica não temos sido muito responsáveis, tão pouco bons cuidadores da criação. Temos visto o efeito das mudanças climáticas sobre a agricultura, a saúde, os ecossistemas, os recursos hídricos e os meios de subsistência. Estudiosos também afirmam ver sinais precoces de que o sistema de recifes de corais e o sistema ártico estão passando por modificações irreversíveis. Como reagimos a isso tudo?

Na tentativa de satisfazer impulsos interiores e atender a demandas criadas pelo mercado e suas ditaduras, onde na maior parte do tempo nos sujeitamos sem quase refletir, vemos então uma iníqua injustiça ecológica, uma exploração repetida por gerações, que agora beira o limite. Nossa voracidade consumista devorou recursos até quase esgotá-los. A exploração excedeu-se a tal ponto que devastamos ecossistemas inteiros, contaminando solos, as águas, os ares e os alimentos. Onde estava a ética, as considerações sociais e sanitárias? Comprometemos as futuras gerações?

Em triste e preocupante situação que criamos não podemos seguir ignorando a realidade que nos cerca. Nossa irresponsabilidade traz consequências ameaçadoras, que complicam cada dia mais rotinas simples, dos grandes centros aos sertões praticamente desconhecidos.

Sendo a oração um diálogo, tendo um Deus criador para conversar e ouvir, como a fé cristã pode ajudar-nos? Bem, acredito que as implicações são inúmeras, que espaços devem ser ampliados para se estudar e conversar melhor a respeito, contudo, hoje poderíamos pensar na singeleza e força transformadora que a oração pode ser.

A oração pode conduzir-nos a novas perspectivas, mudar nossa postura a partir do centro, uma interioridade resgatada apesar do exterior confuso. Quanto pode a oração?

Henri Nouwen destaca dois efeitos da oração na vida de Thomas Merton que foram facilmente crescendo: um estilo de vida diferente (cujos hábitos se tornaram mais austeros) e a receptividade crescente frente à beleza da natureza. Ou seja, resultados visíveis da oração em nós podem ser: uma vida mais disciplinada e simples, além de uma atenção mais sensível ao nosso ambiente.

Para usar as palavras de Nouwen, descrevendo as mudanças no Merton: “está menos tenso, menos agitado, menos desamparado, menos inquieto e a natureza que o cerca, antes despercebida, desabrocha agora numa beleza nunca dantes notada. É impressionante constatar como a oração abre os olhos de muita gente para a natureza. A oração torna o homem contemplativo e atento. O homem deixa de manipular, passando a ser mais receptivo diante do mundo. Não agarra as coisas, mas as acaricia, não as agride, mas beija, não as esquadrinha, mas admira-as. Para quem assim age, a natureza pode mostrar-se completamente renovada. Ao invés de ser um obstáculo, torna-se um caminho; em vez de ser escudo impenetrável, passa a ser um véu que descortina horizontes desconhecidos”.

A oração também educa a alma, faz-nos mais sensíveis com uma qualidade na atenção antes perdida, regenera olhos adoecidos. Assim diz Davi, num de seus salmos: “Bom e justo é o Senhor; por isso mostra o caminho aos pecadores… Todos os caminhos do Senhor são amor e fidelidade” (Sl 25.8 e 10). A oração é um espaço onde caminhos são mostrados, pecados são assumidos e pecadores são transformados. Crer num Deus cujos caminhos são amor e fidelidade me encoraja a ter conversas francas, a perseverar no caminho e ter a esperança renovada.

Sigamos descobrindo e desfrutando mais das orações.

Apenas humanos

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A Bíblia é repleta de textos fascinantes, que nos impressionam por sua atualidade, por falarem tão profundamente de nossa humanidade. São trechos vivos, que nos provocam a refletir mais seriamente sobre a vida, nossas escolhas, e a estarmos atentos às tentações que nos cercam.

Por agora destaco uma parte da viagem missionária dos apóstolos Paulo e Barnabé em Listra (registrado por Lucas em Atos 14.8-15). O texto nos conta que lá havia um paralítico dos pés, aleijado desde que nasceu, nunca havia andado. Mas teve a oportunidade de ouvir Paulo e esse olhou diretamente para ele, viu nesse paralítico fé para ser curado, e assim, simplesmente disse para levantar e ficar em pé. O homem que vivia sentado, não apenas ficou em pé, ele deu um salto e começou a andar. E a multidão que ali estava para ouvir a Paulo ficou impressionadíssima e começou a gritar: “Os deuses desceram até nós em forma humana!” Culturalmente não seria a primeira vez, mas sempre um momento especial. E o que se faz diante de um deus? Oferece-se sacrifícios. Assim era entendido e assim começou-se a fazer. O sacerdote mais próximo começou a providenciar as oferendas rapidamente e agilizar outros a fim de que esses deuses fossem bem recebidos, adorados. E Barnabé e Paulo, ao entenderem do que se tratava, desejaram interromper aquilo tudo imediatamente, portanto, até rasgaram as roupas e procuraram gritar mais alto: “por que vocês estão fazendo isso? Nós também somos humanos como vocês… afastem-se dessas coisas vãs e se voltem para o Deus vivo”.

Hoje, encontramos com certa facilidade, líderes que ao contrário de Paulo e Barnabé buscam adoração, e olha que nem fazem muitos milagres! Mas desejam ter sua multidão particular de seguidores, de gente que os admirem, que se sacrifiquem por seus projetos pessoais, que confundam sua autoridade com a de Deus. Como é bom ser bajulado, solicitado, reverenciado, e esse gosto vai crescendo por dentro, até o sujeito achar natural que ele seja mesmo especial e notado por isso. Logo, não deve ser questionado, e discordar dele é como voltar-se contra Deus. Às vezes isso se dá de maneira sutil, lenta, mas exercer liderança é sempre correr esse risco, lidar com essa tentação.

Respeitados líderes e alguns mestres já nos alertaram. Clodovis Boff nos lembra que o poder humano está marcado pela concupiscência. Richard Foster comenta que “o casamento entre o orgulho e o poder leva-nos à beira do demoníaco”. Thomas Merton afirma sobre a necessidade de “sermos salvos do abismo de confusão e de absurdo que é o nosso próprio ser mundano. A pessoa tem de ser salva do indivíduo… ser libertado do ego esbanjador, hedonista e destruidor, que procura apenas cobrir-se com disfarces”. James Houston esclarece que “o narcisismo espiritual significa assumir a responsabilidade pessoal de ser seu próprio Salvador, de ser a força que move e molda a própria espiritualidade”.

Aprecio a ênfase de Paulo, salientando: “nós também somos humanos como vocês”. Parece que nosso tempo incentiva cada vez mais o cuidado vaidoso com a imagem que é o que se sobressai, embolado na igreja com um valorizado ativismo, resultando num afastamento natural daqueles que estão ao redor. Não há tempo para discipulado, mas há instantes para alimentar os fãs. Não há investimento na intimidade, no aprofundamento dos relacionamentos fraternos, mas há vitrines nos congressos que são concorridas, espaços nas mídias, e assim nos distanciamos do contato com a realidade, com a nossa humanidade pouco conhecida, quase nunca assumida.

Nos perdemos, ou no mínimo, nos distraímos com coisas vãs, com o supérfluo na caminhada cristã, não permitindo que o evangelho de Jesus Cristo arranque nossas máscaras, revele-nos quem de fato somos em nosso íntimo.

A preocupação com a popularidade parece maior do que o cuidado com a interioridade. Desprezamos o tempo de silêncio, banalizamos relacionamentos próximos, pessoalidade verdadeira, vínculos que exigem atenção e dedicação.

Há poucos interessados em conhecer de onde vêm suas dores, preferem apenas aplacar os sintomas como insônia, ansiedade, depressão, etc. Esconde-se fragilidades, e ignora-se sinais de que algo não vai bem do lado de dentro.

A comunhão genuína pode descortinar embaraços, nos ajudar a nomear inquietações, a confessar um narcisismo que não conhece freios. Permitir que outros se aproximem da gente como realmente somos e não como deveríamos ou gostaríamos de ser, é muito proveitoso, libertador, potencialmente curador. Podemos encontrar consolo e encorajamento, ajuda para voltarmos ao essencial, voltarmo-nos ao Deus vivo que tão bem nos conhece.

Mais um poeta se vai

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Ele chegou aos oitenta anos, mas vinha sofrendo, nos últimos, com problemas físicos. Com os anos, as doenças também chegaram. Ora mais abatido, ora ainda mais sensível, prosseguiu enquanto pode.

Rubem Alves dizia poeticamente sobre a finitude que sentia se aproximar: “de um lado, sou o rio que vai indo pela planície, sem retorno, para o mar. Do outro sou piracema, peixes rio acima em busca da infância… E assim vou indo, o corpo trabalhando, na direção do mar, a alma brincando, na direção das nascentes…”. Alcançou o mar.

Em nossa memória ficam suas piracemas, sua alma brincante, sua delicadeza e sensibilidade. Seus textos fluíam como poucos. Era bom de ler. Mesmo quando eu divergia, eu me encantava, respeitosamente.

Sua escrita era carismática, ele era acolhedor. Bom ouvinte, criativo, cabeça de filósofo e coração de poeta. Boa conjugação! Já em seus anos avançados disse: “Na velhice saímos à cata das palavras essenciais. Por isso nos voltamos para os poetas”. E assim o fez, continuou cultivando a beleza e a alegria.

Há décadas lendo e encontrando Rubem Alves, sempre atenta a suas publicações, vendo sua maturidade em forma de frases bem colocadas, comecei a fazer um dicionário particular dele. Depois saíram diversas publicações com alguns verbetes, mas, há muito mais nele a ser aproveitado. Há uma herança a ser visitada.

Rubem não viveu do passado, embora tenha sido marcado por ele. Era alguém sintonizado, como bom educador, contextualizado. Atentava para a realidade sem perder a perspectiva esperançosa: “é preciso viver a vida com sabedoria para que ela, a vida, não seja estragada pela loucura que nos cerca”.

Eu celebrava suas percepções: “A alma chora pelo que não existe”. Sim, seres de incompletude, inquietos pela falta, e como Deus trabalha em nossa falta! Mas também sobre a alma dizia mais: “a alma é uma biblioteca. Nela se encontram as estórias que amamos”. E várias estórias ele as contou e nos abençoou com sua biblioteca interna e única. Como não sentir saudade?

Aproveito o que ele mesmo disse para lidar agora com essa saudade: “falamos para transformar a ausência em presença”, ou, “as grandes comunhões não acontecem em meio aos risos da festa. Elas acontecem, paradoxalmente, na ausência do outro. Quem ama sabe disso. É precisamente na ausência que a proximidade é maior”. Quero estar perto, continuar falando de seus escritos, porque neles havia uma brisa de beleza da vida, de quem a seu modo conheceu o Criador. Viva a comunhão.

Rubem Alves foi um artista das palavras. De modo sucinto expressava: “a arte é isso, pegar o eterno que cintila por um instante no rio do tempo”, e ainda, “a arte são as asas do corpo. Por ela voamos!” E ele voou e tocou na eternidade que Deus colocou em nosso coração, o fez de forma singular.

Conhecedor da beleza ele repetia: “creio que dentro de todos, mora, adormecida, a nostalgia pela beleza”. Difícil ler o relato da criação no Gênesis e não assentir.

Em sua carta de despedida, lida em seu velório a pedido dele, disse: “não terei últimas palavras. O que tinha para dizer, já disse em vida”. E me alegro por ele ter dito tanto. E penso que valerá a pena visitarmos esse escritor nos livros que ele nos deixou. Sugiro que até os resistentes o façam. Desarme-se e aproveite. A beleza está logo aí.

Pensamento mágico

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Nessas últimas semanas nosso país respirou Copa do Mundo, e desde nossa derrota para a Alemanha, que nos tirou da final, vimos uma enxurrada de comentários, críticas, muita piada, gente frustrada, lamentos por todo o canto, lágrimas, enfim, um tanto de brasilidade diante da derrota, nosso jeito de encarar beleza e tragédia.

A jornalista Eliane Brum escreveu (no jornal Folha de São Paulo – 11/07/2014) o seguinte: “Essa foi a seleção do pensamento mágico. Age-se como se houvesse uma predestinação. Se você acreditar muito, você consegue. Se você rezar muito, acontece. A arrogância enorme de achar que ‘deus’ é torcedor do seu time porque você é o mais merecedor expressa nas cenas de joelhos dentro do campo, os dedos apontando para o céu, a oração em transe nos momentos-limite. Só que acreditar não foi o suficiente para fazer acontecer. A realidade deu de goleada.”

Chamou-me a atenção o quanto esse pensamento mágico está por toda parte hoje em dia. Essa espécie de pensamento ilusório do tipo onipotente, infantilizado, crente de que apenas a força do pensamento seria capaz de reverter uma narrativa ou mudar um desfecho. E mesmo, o quanto hoje a oração, para muitos, não passa de um exercício supersticioso, um pensamento mágico, onde fé e pensamento positivo se misturam ou são praticamente a mesma coisa.

Parece que vivemos tempos confusos, onde as definições que ainda sobrevivem são pouco consistentes, fechadas ao diálogo, a agressividade na crítica tornou-se comum, e tudo é rápido e ralo. Lembro-me de Enrique Rojas, décadas atrás, dizendo: “Assim como nos últimos anos entraram em moda certos produtos light – o cigarro, algumas bebidas ou certos alimentos -, também foi sendo gerado um tipo de homem que poderia ser qualificado de homem light. Qual é o seu perfil psicológico? Como poderia ser definido? Trata-se de um homem relativamente bem-informado, mas de escassa educação humanista. Tudo lhe interessa, mas de forma superficial; não é capaz de fazer uma síntese daquilo que percebe e, como consequência, se converte numa pessoa trivial, superficial, frívola, que aceita tudo, mas que carece de critérios sólidos em sua conduta. Tudo nele se torna etéreo, leve, volátil, banal, permissivo”.

Nem tudo precisa ser denso, sério, perfeitamente elaborado, prolongado, mas, acentua-se o fato de que temos opinião pra tudo, mas nada sólido. Apenas um tanto de amargura que solta-se facilmente pela língua, e em tempos digitais – dedos, afiados. E no mundo religioso, dito cristão, parece que não é tão diferente. Uma espécie de “cristão light”, onde oração e fé, num país já bastante místico, têm um pouco de tudo e quase nada.

É interessante retomar a Thomas Merton que dizia que “como o homem é, assim ele ora. É pelo modo de falarmos a Deus que nós nos fazemos aquilo que somos. O homem que não ora jamais, é alguém que tentou fugir de si mesmo, porque fugiu de Deus”.

Desconfio que por não sabermos e não desejarmos orar, descobrimos conveniente fuga, vivendo como sujeitos light. Acrescido de pouco conhecimento bíblico, a vivência é ainda mais pobre, confusa e então, o vale tudo aparece, a superficialidade cresce, e o pensamento mágico domina.

Quero tempo para entender, calma para refletir, disciplina para estudar, empatia para ouvir, reverência para dialogar, silêncio para concluir.

Vencer ou Vem ser – um chamado para a vida

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Nós gostamos dessa ideia de que nascemos para vencer. Histórias de superação nos encantam. Um discurso que fale de vitórias na vida nos atrai. Entretanto, quais vitórias, ou, do que se fala quando nos dizem sobre vitória?

Bom êxito no viver, sim, o que seria viver bem? Como isso é compreendido num contexto onde impera o capitalismo senão uma vida farta, muito acúmulo de bens, segurança material?! Triunfar é ter sucesso, e também isto é compreendido, ao menos em boa parte, como conquistar fama, admiração, ou seja, lutamos para sermos reconhecidos, de preferência por termos uma vida brilhante. Ser um destaque, ser muito bom, superior em alguma área. Queremos um espaço na galeria dos que sobressaíram e foram condecorados, afinal, hoje em dia só é considerado vitória se houver aplausos, seguidores, comentários, curtidas, etc. Eu vencer e ninguém ficar sabendo não é mais suficiente. A validação da plateia é o que buscamos incansavelmente.

Numa sociedade assim o medo do fracasso cresce cada vez mais. Passar pela vida desapercebido? Muitos vão se desesperando ao ver o tempo passar e a ilusões não serem satisfeitas, outros estão cansados e oprimidos, na marcha depressiva dos desistentes.

Cada vez mais me parece que estamos sensíveis a qualquer fracasso, a paúra de se encontrar entre os perdedores, seja em que área for. E a derrota nem precisa ser definitiva, basta ser a de um dia para nos derrubar. Alguns se recuperam, outros se veem fora, abatidos, procurando voltar para a casa que eles já nem possuem. Há falta de um lugar para serem acolhidos, compreendidos em suas dores, acalentados.

Ao olhar para tal situação cresce em mim a força de um encontro, relatado por um médico, chamado Lucas. Sim, aquele que escreveu um dos evangelhos. Conta de um pescador abatido, desanimado, com o gosto amargo do fracasso, pois, havia se esforçado a noite inteira e não pegou nada. Só lhe restava lavar as redes e esperar por melhor sorte noutro dia.

A este Jesus diz: “Vá para onde as águas são mais fundas” (Lc 5.4). Jesus insiste para que volte ao lago e ouse mais. Desafia-o a fazer nova tentativa, só que não da mesma forma, agora, em águas mais fundas. Que pescador que não sabe disso? Contudo, que pescador cansado e que já passou toda uma noite tentando ainda tem coragem e fôlego?

A resposta do pescador esforçado e derrotado é: “porque és tu quem está dizendo isto, vou lançar as redes” (Lc 5.5). É alguém que apesar de todo esforço em vão ainda se permite nova tentativa. É alguém ainda capaz de ouvir, capaz de respeitar a voz de alguém especial, capaz de acreditar na autoridade daquele que fascinava multidões por falar a palavra de Deus.

Relata-se, então, a surpresa do conhecedor daquelas águas. Um experiente pescador que ousa ir às aguas mais profundas para em seguida ver suas redes rompendo de tantos peixes. Um homem que rapidamente sai da derrota para a inesperada vitória abundante. E isso não seria suficiente? Haveria espaço para algo mais? As águas profundas não tinham sido alcançadas, a obediência se dado e o resultado positivo obtido? Já poderia se encerrar a história, o final feliz estava pronto.

O pescador estava assustado com tamanho imprevisto. Era bom, mas era muito. Sentiu-se constrangido. Pediu para que Jesus se afastasse. E a resposta de Jesus é: “Não tenha medo; de agora em diante você será pescador de homens” (Lc 5.10). Assim, Jesus chama a uma vida que é paradoxalmente parecida e diferente. A semelhança é que ele continuará a ser pescador, mas, não um pescador comum, agora, pescador de gente.

Jesus convida-nos a ser. Penso que essa é a melhor vitória – a de que podemos viver para aquilo que fomos chamados a ser. Não se trata uma vitória que necessariamente ganhará manchetes, que atrairá os holofotes da vida, mas de um viver onde a realização se dá em águas mais profundas.

Para aquele pescador uma revolução acabara de acontecer. Mais do que aquele resultado exterior, há um resultado interior – um chamado a ser diferente. Em sua singularidade ele poderia agora descobrir o que seria ser pescador de gente. E ao reler sua história na Bíblia vemos o quão significativo foi aquele pescador ter ouvido aquele chamado.

Mais do que se preocupar com o êxito com aquilo que se faz, embora isso possa ter certa legitimidade, não necessariamente prioridade, trata-se de atentar para quem se é. Não ceder a pressão da correnteza que nos sugere forçar algumas proezas, falsas ou ilusórias vitórias. Correr atrás do vento pode ser divertido por um tempo, mas, tem o seu limite. Não preenche, não colabora para a identidade. Ouvir a Jesus é ser desafiado a algo novo. E dentre algumas implicações, talvez, seja preciso abandonar redes que já são familiares, abandonar velho hábitos, se aventurar e confiar naquele que chama-nos a uma nova vida. Quem vai ouvi-lo hoje?

Um minuto só

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Fiquei novamente impressionada com a diferença que faz um minuto.

No sábado (24/05), foi a final da Liga dos Campeões, importante campeonato no futebol europeu. Pela primeira vez dois times da mesma cidade, digamos, um primo rico e outro pobre, disputaram essa final. A cidade é Madri, embora a disputa tenha sido em Lisboa. Os dois times eram Atlético de Madri e Real Madri.

O Atlético venceu por 1 a 0 no tempo de 90 minutos, tempo oficial de uma partida. Campeão? Não, geralmente os juízes dão alguns minutos de prorrogação. Aquele juiz resolveu dar 5 minutos. Passado os 4 minutos, onde o Atlético já sentiu o gostinho da vitória, praticamente com a taça na mão, ainda tinha o minuto final e nesse, tão somente um minuto, o Real empatou. E na próxima meia hora de prorrogação o abatimento e cansaço do Atlético fez com que ele encerrasse aquela partida perdendo pelo placar de 4 a 1. Que virada!

Chamou-me a atenção a diferença que um minuto fez na vida daqueles jogadores. Sobretudo, para os jogadores do Atlético, fiquei a imaginar o quanto eles lamentariam e carregariam para sempre na memória a diferença que esse 1 minuto fez. Tão perto e tão longe de ser campeão por causa de um tempinho tão curto…

A expressão “espere um pouco, só um minutinho” é comum. Dizemos para expressar que não estamos prontos, que haverá necessidade de esperar, que agora não. São filhos que dizem às mães, esposas que dizem aos maridos, empregados que dizem a seus chefes, e por aí vamos, banalizando 1 minuto.

Lembrei também de outro minuto final. Quando Jesus já estava crucificado, outros dois criminosos foram crucificados com ele. Um deles insultava Jesus nos minutos restantes de vida. Preferiu terminar sua vida com xingamentos, com reclamações e blasfêmias. Essa foi sua escolha do que fazer com seu minuto, com seu fim. Já o outro o repreendeu, depois, virou-se a Jesus e disse: “Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu Reino” (Lc 23.42). Ele, assim, preferiu investir ao invés de desperdiçar seu último minuto. Optou por um diálogo significativo, boa reflexão sobre a vida e arrependimentos possíveis. Soube bem aproveitar, e mesmo perdendo a vida, ainda a ganhou.

Uma linda canção, de um dos maiores poetas que já tivemos dentro da música cristã brasileira – Sérgio Pimenta, também salienta o momento (que pode ser de um minuto só): “Nem um momento só deixou sua mão/Deixou-me o seu olhar/Nem quando eu dava dó/Negou-me o seu amar”. Como essa convicção faz toda a diferença em cada minuto que se vive!

Um minuto não é pouco, dependendo do contexto, ele pode fazer toda a diferença. Como olhamos para uns poucos minutos? Eles lhe são preciosos ou tem sido desperdiçados? Já calculou a sua vida não em anos, mas em minutos? Talvez tenha até a impressão maior de que envelheceu mesmo. Mas o ponto é considerarmos como lidamos com o tempo, ainda que curto. Aproveitamos ou banalizamos?

Não sei quantos minutos gastou para ler esse breve texto, mas que lhe ajude a pensar sobre suas escolhas em relação ao tempo, sem esbanjar insensatamente. Que tal prestar mais atenção em seu próximo minuto, e no outro, e no que vem a seguir, enfim, na vida?

Gritos de hoje, de ontem e…

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Nessa semana, andando pela cidade de São Paulo, paro num semáforo. Enquanto olho para o sinal vermelho ouço palavras misturadas e gritadas, e do que consigo entender, frases soltas se repetem: “De tanto medo de morrer fiquei com medo de viver. Eu quero minha alma de volta. Devolvam minha alma”.

Olhei pelo canto do olho e vi que se tratava de um senhor, talvez por volta de seus 50 e poucos anos, maltrapilho, desses homens de rua que cruzamos o tempo todo, e de tanto encontrá-los vamos ficando indiferentes. Ignoramos, em geral, suas solicitações, suas condições, e irritados e/ou assustados, nos afastamos.

Contudo, aquela fala ficou ecoando em mim. Em meio às suas perturbações psicológicas aquele homem tinha uma lucidez estranha de sua situação, uma vez que lucidez encontra-se quase em extinção. Ele, com um rádio antigo na mão e um pedaço curto de pau (simbolizando um microfone), gritava sua angústia e repartia sua realidade.

Por um lado pergunto-me: quem ouve esse gemido? Andamos tão apressados, tão ensimesmados que gritos de fora somam-se aos gritos de dentro e, por não aguentarmos tanto ruído, nos perdemos em afazeres sem fim.

Por outro lado, penso que aquela aflição, gritada em desespero, retrata a nossa realidade. Assim como aquele homem, já com pouca ou nenhuma referência de sua própria dignidade, ora se perde em pensamentos desconexos, ora compreende e coloca acertadamente em palavras o que se passa do lado de dentro. Alguns poucos conseguem expressar-se tão verdadeiramente bem, assumindo seus medos e consequências, repartindo suas fragilidades e expondo debilidades. Muitos escondem-se atrás de máscaras, funcionam bancando aparência de fortaleza e sabedoria, mas, sofrendo horrores que não nomeiam. Optam pelo orgulho de manter-se em pé, mas interiormente estão prostrados pelo medo, onde a alma perdeu-se.

Os evangelhos registram a história de um homem de rua, um cego, que vivia à beira do caminho. Limitado por suas condições, pedia esmolas. Essa era sua vida, assumir suas limitações e brigar por ela.  Mas, certo dia, começou também a gritar. Seu grito não foi ignorado. Entretanto, para a maioria o incômodo era pior do que suas condições, então, o mandavam se calar. Mas, ele não só insistia como começou a gritar mais alto ainda: “Filho de Davi, tem misericórdia de mim!” (Mc 10.48). Jesus, que por ali passava, parou e pediu para o chamarem. E assim que ele se aproximou Jesus lhe pergunta: “O que você quer que eu lhe faça?”. Não era evidente? Por que essa pergunta? É impressionante o número de coisas supostamente sabidas, mas pouco assumidas. Em nós, seres de desejos e de gula, fica confuso o que realmente queremos ao gritarmos, e até mesmo o que queremos de Deus.

Nós, não pouca vezes, achamo-nos organizados, bons em articulações, fazendo ligações aqui e ali, associações variadas, pronunciando-nos sobre tantos assuntos até com alguma distinção e clareza, porém, cegos para nossa real necessidade.

O cego que buscou Jesus respondeu: “Mestre, eu quero ver!” (Mc 10.51). Ele não pediu para ter um dia de boas esmolas, não pediu para ter um bom cão-guia, não pediu para desfrutar de uma refeição única, enfim, não desperdiçou a oportunidade.  Era cego, mas não era estúpido. E a pergunta de Jesus o ajudou a ter consciência clara de sua necessidade prioritária. Sim, boas perguntas podem nos provocar e nos organizar interiormente.

Aquele homem foi atendido em seu gemido. O homem que encontrei essa semana não sei se já foi. Mas pedi a Deus por ele, pedi a Deus por mim. Ele me ajudou a lembrar de angústias não nomeadas, de medos devastadores, de não perder a alma em meio à confusão, de minha própria cegueira. Então, também clamei…“Filho de Davi, tem misericórdia de mim, tem misericórdia daqueles que dão seu jeito de serem ouvidos e não desistem mesmo quando reprimidos e discriminados, tem misericórdia dos corajosos que se apresentam!”

E é bom saber que Jesus nos ouve, nos chama, mas, o que já discernimos da vida?

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