Tivemos um carnaval diferente nesse 2013. No meio da folia, uma notícia séria. O tradicional marasmo noticiário foi rompido. As manchetes de jornais esperadas, com destaques de escola de samba, foram substituídas por algo que alvoroçou jornalistas e mais meio mundo – o papa renunciava.
Papa Bento 16, na segunda-feira, 11 de fevereiro, anunciou em seu discurso aos cardeais no Vaticano, sua renúncia: “Após ter examinado perante Deus reiteradamente minha consciência, cheguei à certeza de que, pela idade avançada, já não tenho forças para exercer adequadamente o ministério petrino”.
Muitas especulações se fazem a respeito dos reais motivos. Comentários se multiplicam, suspeitas são levantadas, apostas são feitas, ousadas afirmações distribuídas. Contudo, quanto custa a um papa assumir: “já não tenho forças”?
O que sabemos a respeito? Quem é capaz de reconhecer e confessar? Em que medida nos aproximamos dessa realidade e vivemos tal experiência?
No final de janeiro um filme me perturbou profundamente. Ele ainda está em mim, convulsionando-me nas emoções. Trata-se do filme “Amor”, do diretor austríaco Michael Haneke, 70 anos. Ele contou que a inspiração para o filme veio de sua própria história, pois, filho de atores, foi criado por uma tia, que sofria de reumatismo e, no auge da doença, aos 92 anos, pediu ajuda a Haneke para se matar. Ele se recusou. Um ano depois, ingerindo soníferos, ela se matou.
O filme retrata a decadência física e mental de um ser amado. Um casal de professores, já aposentados, com cultura, dinheiro e certo prestígio, vivem a sós num apartamento elegante, cercados de livros, música e um piano na sala de estar. Uma existência tranquila até que ela sofre um AVC, onde fica com uma paralisia parcial num primeiro momento, mas esse é apenas o princípio das dores. O relato lento, simples, triste, real e belo, aborda a impotência e a fragilidade humana de maneira delicada. Quando chegará o nosso fim? Não sabemos, mas suspeitamos, e um sinal evidente da aproximação do fim é a consciência do desvanecer das forças.
A atriz francesa, Emmanuelle Riva (indicada ao Oscar de melhor atriz por sua atuação nesse filme), consciente de que a juventude é efêmera, disse: “Acho que devemos encarar a velhice, e a presença da morte que ela traz muitas vezes, com alegria e não com tristeza. Eu, que vivo meus 86 anos, me pergunto sobre como lidar com a perda da dignidade, a dependência de outros, as dores. E como viver o amor nessas condições? […] O filme é uma dualidade, esta humanidade entre os dois, que está em todos nós, que seduz nesta história. É sobre um drama que todos nós vivemos ou vamos viver. Todos temos um mal, uma doença, uma fragilidade. Como lidamos com elas é que nos faz diferentes”.
A sociedade em geral corteja celebridades, amenidades, cultua a juventude ou aparência dela, consome o supérfluo com avidez, e, despreza a velhice, bem como a realidade, nem sempre agradável, que nos cerca.
Rotas de fuga não nos faltam. Entretenimentos nos cativam, nos levam para longe de responsabilidades, o mundo digital nos atrai mais do que encontros pessoais, laços afetivos vão se enfraquecendo, interesses “novidadeiros” nos encantam e falta-nos tempo para o cuidarmos do outro, ouvirmos repetidas histórias de alguns velhinhos, oferecermos atenção carinhosa e, de repente, recebermos um tesouro de sabedoria vinda da experiência daquele que viveu mais do que nós.
Não gostamos, nenhum um pouco, de abandonar ilusões de estimação existencial, e encarar a realidade da decadência física, das limitações que se expandem. Escamoteamos sensações que nos remetem ao fim. Talvez, por isso mesmo, o livro de Eclesiastes seja pouco palatável para tantos.
Alguém já disse que sabedoria é contemplar o abismo sem ser destruído por ele. Ou, nas palavras de Rainer Maria Rilke: “conter a morte inteira, docemente, sem nos tornar amargos”. E Rubem Alves insiste que “só podem viver bem aqueles que aprendem a sabedoria que a morte ensina”, e que por isso mesmo, “é preciso contemplar o crepúsculo no horizonte para sentir a beleza incomparável do momento”.
São muitas as perdas no decorrer da vida. O evangelho, no entanto, no ensina um princípio interessante: mesmo perdendo é possível ganhar. Mas se nossos medos nos dominam, nossa gula não vê limites, nossa arrogância nos enrijece e nos afasta da intimidade, e nossa ganância nos controla, aí, não teremos a coragem de perder a fim de ganhar.
Quando em 19 de abril de 2005 o papa Bento 16 assumiu, dificilmente imaginou viver essa realidade em menos de 8 anos. Por coragem ou por pressão, não sei, mas ouvir a afirmação: “já não tenho forças” me tocou. E aí, me lembrei das palavras de Henri Nouwen: “Estamos preparados para a morte ou a estamos desprezando por meio do trabalho? Estamos nos ajudando mutuamente a morrer ou simplesmente supomos que estaremos sempre aqui ao lado do próximo? Nossa morte dará nova vida, nova esperança e nova fé aos amigos ou será apenas mais um motivo de tristeza? A principal pergunta não é ‘Quanto seremos capazes de produzir durante os poucos anos de vida restante?’, mas, sim, ‘Como podemos nos preparar para nossa morte, de modo que ela seja uma nova forma de enviar o nosso espírito e o de Deus àqueles que amamos e que nos amaram?’.” Que as dores, e as perdas, nos ajudem a perceber mais profundamente a realidade de quem somos e para onde vamos.