Por Héber Negrão

O livro “Desafios da Liderança Cristã”, publicado pela Editora Ultimato em 2016, apresenta uma série de exposições de John Stott na conferência da International Fellowship of Evangelical Students (IFES) em Quito, Equador no ano de 1985. A partir das orientações de Stott, apresento a seguir cinco dicas que podem ser aplicadas à realidade de pastores, missionários e líderes que desenvolvem trabalho nas regiões norte e nordeste do Brasil.

1 – Contextualize e não desanime com o véu que cega o entendimento das pessoas

Existem no Brasil 121 etnias indígenas pouco ou não evangelizadas (DAI/AMTB) | Foto: Eliseu Júnior

O primeiro problema que o autor aborda é a questão do desânimo que pode levar o líder à uma perda de visão e de entusiasmo para o trabalho. Em sua exposição de 2 Coríntios 4 ele destaca as várias vezes em que Paulo diz “não desanimamos”. Segundo o texto as causas desse desânimo são a cegueira espiritual e a fraqueza do próprio corpo. O “véu”, termo usado por Paulo para fazer referência à esta cegueira espiritual, é algo imposto por outrem impede que os ouvintes de Paulo compreendam a mensagem do Evangelho.

Ao trabalhar em comunidades ribeirinhas, vilas sertanejas ou aldeias indígenas o obreiro cristão necessariamente vai precisar lançar mão da contextualização do Evangelho, conhecendo a cultura onde trabalha de modo a apresentar uma mensagem relevante e que faça sentido para a cosmovisão de seu público. Entretanto, não importa o esforço feito para que isso aconteça, sempre haverá o véu cegando o entendimento dos incrédulos. Stott transcreve bem o desespero que muitos de nós enfrentamos quando isso acontece: “expomos o evangelho com clareza, mas as pessoas não podem compreendê-lo. Nós esmiuçamos de forma tão simples que pensamos que até mesmo uma criança poderia compreendê-lo, mas elas não o entendem (…). Duvido que haja algo mais desanimador do que isso para o obreiro cristão.” (p.16).

Que alívio poder acompanhar a continuação da exposição de 2 Coríntios 4. Nos versos 4 a 6 Paulo apresenta o antídoto para o desânimo: o poder de Deus. Aqui ele faz um belo jogo de palavras mostrando que o deus deste século é o responsável pela cegueira espiritual dos incrédulos, porém nada pode impedir que a luz do Evangelho penetre nesta escuridão. “Ele mesmo brilhou em nossos corações, para a iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Cristo” (v.6).

Sobre esse texto Stott fala que “o evangelho é a luz. É o meio pelo qual Deus vence as trevas e brilha no coração das pessoas” (p.19). A verdade é que nós, enquanto ministros do Evangelho, não devemos deixar de lutar para que nossa mensagem seja clara, acessível e compreensível aos nossos ouvintes. Nossa tarefa é mostrar a luz do Evangelho, mas apenas o Evangelho pode penetrar nas densas trevas da cegueira espiritual. Por isso, não podemos nos desanimar!

2 – Pratique o saudável costume do descanso

John Stott identifica o segundo problema como a autodisciplina. Segundo ele, é comum encontrarmos líderes estafados por não tirarem um tempo para si mesmos. Para combater aquela visão “espiritualizada” de que o líder deve estar sempre trabalhando, Stott menciona o exemplo de Jesus Cristo quando entrou no barco depois de um dia cansativo e se afastou da multidão de seguidores para ter um tempo de descanso e oração em Betsaida. (Mc 6.45).

Na foz do rio Amazonas, há mais de 10 mil comunidades ribeirinhas que ainda não foram alcançadas pelo evangelho | Foto: Benevenuto Júnior

O autor menciona que, dentre as diversas lições que ele aprendeu em suas viagens pela América Latina a que mais se destacou foi a sesta, a ponto de ele dizer que procuraria manter o costume quando estivesse de volta à Inglaterra. De fato, nos estados do Norte e Nordeste (os mais quentes do país), temos o saudável costume do descanso após a hora do almoço. Na aldeia indígena onde servimos não vemos ninguém andando fora de casa ou trabalhando nesse período. Não seria muito difícil para nós imitarmos os costumes das pessoas a quem servimos. Façamos isso, pelo bem de nossos ministérios.

Algumas horas de descanso no dia, porém, não substituem o dia semanal de descanso que o Criador reservou para toda a sua criação. Mesmo o obreiro cristão deveria observar esse mandamento. “Se não o cumprirmos, estamos dizendo que somos mais sábios que Deus. Ele nos fez de tal modo que precisamos do ritmo do descanso de um dia a cada sete.” (p.28)

Ainda sobre o problema da autodisciplina, John Stott fala que os obreiros cristãos deveriam ter um cronograma diário de atividades organizando as tarefas do dia por ordem de prioridade. Ele dá uma boa dica de orar pelas tarefas do dia, sem dúvida isso ajudaria a lembrar do que temos que fazer. É fácil ver o caráter sistemático e metódico do britânico nessas orientações, mas uma vez que ele aprendeu conosco o valor da sesta, não seria mal aceitarmos sua proposta de organizar nossa agenda diariamente.

3 – Cuidado com o etnocentrismo, ninguém está imune ele

Outro problema abordado por Stott é o de relacionamento. Esse ponto é essencial para o bom desenvolvimento de um ministério, principalmente por que o obreiro cristão trabalha diretamente com pessoas. O autor diz que a base para um bom relacionamento é a consideração do respeito baseado no valor e o valor humano é intrínseco. Aqui podemos ouvir os ecos do Pacto de Lausanne, do qual ele foi o principal mentor: “Porque a humanidade foi feita à imagem de Deus, toda pessoa, sem distinção de raça, religião, cor, cultura, classe social, sexo ou idade possui uma dignidade intrínseca em razão da qual deve ser respeitada e servida, e não explorada.”[1]

É indiscutível que todas as pessoas de todas as culturas têm orgulho de seus próprios costumes e valores. Entretanto, quando olhamos para alguém de outra cultura e julgamos suas atitudes tomando como parâmetro nossa própria cosmovisão caímos no erro do etnocentrismo. Everardo Rocha define este termo como “uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo, e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores e modelos”.[2]

O etnocentrismo está bem presente no pensamento popular nacional evidenciado em diversas piadas e comentários envolvendo características nada agradáveis e, muitas vezes, falsas de brasileiros da região Norte e Nordeste. É mais lamentável ainda quando essas conversas aparecem nos círculos cristãos. Obreiros de outras regiões que vêm servir por aqui também não estão imunes a pensamentos como este. Muito menos estão as próprias pessoas a quem servimos: é comum sertanejos, ribeirinhos e indígenas olharem com discriminação um para o outro [3]. Pessoas da cidade olham com discriminação para pessoas do interior e vice-versa.

Devemos tomar o cuidado com este tipo de mentalidade, quer estejamos em posição de líderes quer em posição de ovelhas. Sobre o versículo de Atos 20.28 John Stott nos alerta para o fato de “tanto o Pai como o Filho e o Espírito Santo estão comprometidos com o bem-estar dessas pessoas” (p.41). Portanto deve ser um privilégio para nós servi-las.

4 – O anonimato pode ser parte fundamental do seu ministério

O capítulo final do livro contém os testemunhos de dois ministros do Evangelho que tiveram o privilégio de começar seus ministérios aos pés de John Stott. O depoimento de Mark Labberton que se encaixa muito bem na realidade que muitas vezes enfrentamos como líderes no Norte e Nordeste do país.

Labberton chama atenção para um sermão de Stott que lhe marcou profundamente. Ele foi feito em cima de um tapete em meio à lama, rodeado de fogueiras e panelas, no escuro quintal de uma casa em Madras, na Índia, atendendo ao pedido de um colega pastor para que ele fosse ministrar a Palavra na casa de sua mãe. John Stott, no intervalo de seu compromisso como pregador internacional, saiu pelas ruas da Madras à procura da casa desta senhora para pregar para poucas pessoas como um pastor invisível.

Em cerca de seis mil povoados do sertão não há igrejas evangélicas | Foto: André Dib

É impactante ler o que Mark Labberton fala a respeito dessa experiência. John Stott atendeu o pedido de seu colega com alegria, “mas para isso, foi preciso persistência pessoal. Significou afastar-se da multidão – a mesma pessoa, servindo ao mesmo Senhor”. (p.65).  O segredo para tal desprendimento de Stott é que ele tinha um caráter aprovado. “O que sustenta e dá testemunho de Deus é fruto de algo que vai além da mera capacidade diante de uma multidão. O maior testemunho vem em um caráter inexplicável” (p.66)

Fico pensando nos inúmeros obreiros tem se empenhado em um ministério praticamente anônimo nos rios da Amazônia e nos áridos vilarejos nordestinos, completamente afastados da multidão. Em comparação com grandes pregadores e pastores de mega-igrejas o alcance destes irmãos é quase inexpressível, porém o que os move à fidelidade no serviço é seu caráter inexplicável.

Quem sabe alguns de nós tenhamos a oportunidade de servir em ministérios mais abrangentes, com um alcance maior do que aqueles no interior do Brasil. Se este for o caso, que este serviço seja igualmente marcado por um caráter inexplicável. Como Stott, é possível sermos a mesma pessoa, servindo ao mesmo Senhor quer seja em um palco perante um grande número de pessoas quer seja no chão úmido de uma palafita à beira do rio.

5 – Comunique de forma simples e clara

 Outro ponto destacado por Mark Labberton a respeito de John Stott é a sua simplicidade. Em um determinado congresso estudantil um jovem seminarista lhe fez uma longa pergunta com vários termos técnicos e expressões teológicas. A reação de Stott foi pedir que o jovem repetisse a pergunta de maneira mais simples, e sua resposta a ela foi igualmente clara. O relato do autor sobre a breve reflexão que Stott fez em João 3.16 no quintal daquela casa na Índia é que ela foi “simples e clara. O tom foi compassivo e cheio de dignidade. A convicção foi pessoal e delicada.” (p.65)

Em nosso ministério nesta região do Brasil frequentemente lidamos com pessoas que não têm o linguajar tão sofisticado, que usam o português como segunda língua (como no caso dos indígenas) ou que não têm a cosmovisão cristã de quem cresceu na igreja. Por isso obreiro cristão precisa se empenhar não apenas no exercício da contextualização do Evangelho, mas também na transmissão simples e clara da mensagem de Cristo.

Nosso desafio é que, como John Stott, estejamos aptos a ensinar buscando “um esforço por uma maior clareza, uma confiança na racionalidade e uma expectativa de competência” (p.66)

Notas:
[1] Pacto de Lausanne, sessão 5.
[2] ROCHA, Everardo. O que é Etnocentrismo. Editora Brasiliense (p. 7).
[3] Sobre o etnocentrismo entre os próprios indígenas clique aqui.

• Héber Negrão é paraense, mestre em Etnomusicologia e casado com Sophia. Ambos são missionários da Missão Evangélica aos Índios do Brasil (MEIB)e da Associação Linguística Evangélica Missionária (ALEM). Residem em Paragominas (PA) e trabalham com o povo Tembé.

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