Por Josué Silvestre

Alagoa Grande é um antigo município do Brejo Paraibano, distando 110 km da capital, João Pessoa. Hoje, tem cerca de 30 mil habitantes. Sempre foi o centro de uma microrregião geoeconômica do Estado. Em 1932, o número de municípios na Paraíba era bem menor do que o atual e a cidade exercia influência política, econômica e social sobre as comunas limítrofes. Para lá se dirigiu o frei Damião, numa de sua primeiras “santas missões”. Mas ele jamais imaginara o que lhe aguardava em Lagoa Grande: a fé, a coragem, a voluntariedade e o conhecimento bíblico de uma adolescente salva por Jesus. Aluna do Agnes Erikyne – colégio presbiteriano que funciona no Recife há mais de cem anos, Isnal estava de férias em Lagoa Grande.[1]Frei Damião, instalado em um palanque erguido em frente ao templo católico da cidade, fazia todas as noites, as suas pregações, antecedidas e concluídas com as célebres procissões que comandava pelas ruas dos lugares onde predicava.

Isnal foi a um culto na Igreja Presbiteriana com a mãe e tinha que passar pela praça na matriz. Ficou escutando o que o frade dizia e chegou em casa comentando que não havia respaldo bíblico para aquela doutrinação. E afirmava:

– Não há necessidade intermediação entre o pecador e Jesus Cristo.

– Salvação só se obtém através do sacrifício de Cristo na cruz do Calvário.

– A Palavra de Deus proíbe a adoração de imagens.

– A Bíblia Sagrada deve ser lida e obedecida e não rasgada e queimada como alguns chefes religiosos ensinam.

O seu tio, Jose Aires, católico, escutou a conversa de Isnal e a desafiou:

– Você tem coração de dizer isso aí a frei Damião?

E a jovem serva de Deus com determinação e entusiasmo:

– Tenho! Se eu me encontrar com ele, com todo o respeito eu falo sobre as verdades da Bíblia e digo que ele está ensinando coisas erradas ao povo.

O comerciante José Aires não deixou para depois. Foi imediatamente à casa paroquial, conversou com o pároco de Alagoa Grande, o padre Gentil, que chamou frei Damião e acertaram uma visita à menina protestante para o outro dia à tarde.

Quando soube que o frade ia mesmo conversar com ela, Isnal passou a orar, pedindo graça e sabedoria ao Senhor e a estudar a Bíblia com afinco, anotando alguns trechos fundamentais para a palestra com o chefe religioso.

No outro dia, logo após o almoço, chegaram frei Damião e o padre da cidade. A palestra se prolongou por quase três horas. Jamais o capuchinho de Bozzano, na distante Itália, imaginou que encontraria uma adolescente nos rincões da Paraíba tão destemida e com profundidade bíblia suficiente para enfrentá-lo.

Isnal conta que foi uma verdadeira batalha espiritual, mas viu logo que sairia vencedora porque o frade não conhecia a Bíblia. Ela citava os textos e ele folheava o seu exemplar para a frente a para trás e não encontrava o livro, quanto mais i capítulo ou o versículo. Num relato encaminhado ao autor, Isnal, enfatiza: “A impressão que dava é que ele nunca havia pegado uma Bíblia.” Aliás, essa é uma informação constante de narrativas de pastores e crentes que polemizaram com Damião e com outros frades e padres romanos, em décadas passadas. Eles não liam a Bíblia e, portanto, não a conhecem. Hoje, talvez já estejam lendo, depois que o Vaticano iniciou suas “aberturas”, apavorado com a perda de milhões de fiéis na América Latina, sobretudo no Brasil.

Casa cheia de familiares e curiosos, Isnal falou sobre o poder de Jesus para o frade, mostrou que a Bíblia condena a idolatria, disse que a Virgem Maria merecia respeito e admiração, mas não salvava ninguém. Alegou que foi o próprio apóstolo Pedro quem disse que a verdadeira pedra era Jesus. A cada argumentação bíblica, Isnal conta que o frade se firmava na tradição católica e alegava que ela não sabia interpretar o texto sagrado.

O diálogo não foi fácil porque o frade evidentemente não aceitava o arrozoado bíblico de Isnal e ela não concordava com o que Damião dizia. Já impaciente, ele terminou fazendo uma pergunta, cuja resposta ela entendia ser óbvia, mas ele se aproveitou para finalizar a conversa.

Eis a pergunta de Damião: “Você é ovelha de Jesus ou de Pedro?” Ele queria que Isnal respondesse que era ovelha dos dois, porque no curso da discussão, o frade tentou convencer Isnal de que Pedro era tão importante quanto Jesus. Um absoluto absurdo.

A jovem crente, no entanto, convicta da fé que professava e da doutrina que seguia, respondeu com muita ênfase:

– Eu só sou ovelha de Jesus.

E frei Damião, num rompante de agressividade:

– Você é “bode” é do diabo, vai para o inferno!

Disse isso, levantou-se bruscamente e saiu rezando alto o seu rosário, enquanto intercalava a prece com imprecações contra os “prutistantes”. Cumpriu-se com Isnal, o que prometeu:

“… não cuideis de como e ou que haveis de falar, porque naquela mesma hora, vos será ministrado o que haveis de dizer. Porque não sois quem falará, mas o Espírito do vosso Pai é que fala em vós.” (Mateus 10.19-20)

A longa conversa de frei Damião com a jovem Isnal Barbosa foi o estopim para a eclosão de uma série de perseguições aos evangélicos de Alagoa Grande. Na mesma noite, ele começou a desenvolver o processo intimidatório que usou em centenas de cidades e vilas do Nordeste:

– Proibiu que se vendesse pão, leite ou qualquer outro gênero alimentício aos “bodes”.

– Proibiu que se comprasse nos estabelecimentos comerciais dos crentes. O pai de Isnal tinha uma padaria e uma loja de tecidos e armarinho.

– Mandou juntar Bíblias, hinários e outros livros distribuídos por evangélicos, para que fossem queimados na praça pública.

As dificuldades para comprar alimentos eram grandes. Vendendo muito pouco, a crise nos seus estabelecimentos crescia. Foram quase dois anos de humilhações, desaforos, intolerância. A família resolver fechar as casas comerciais e abandonar a cidade para evitar consequências mais graves. Mudou-se para a cidade de Patos, em 1935. Ficaram no sertão paraibano pouco tempo. Frei Damião chegou por lá e com ele também veio a perseguição. Migraram para Natal, capital do Rio Grande do Norte.

Isnal conta que o sofrimento daquela fase solidificou a fé dos seus familiares. Hoje, toda a sua casa serve ao Senhor. Ela, os filhos, os genros e noras, são envolvidos em atividades do Reino.

Trecho do livro “Fatos e personagens de perseguições a evangélicos”, de Josué Silvestre, (p. 55 – 58).

[1] Os centenários colégios evangélicos do Recife. Além do Agnes, o Americano Batista é uma respeitável referência na área educacional do Nordeste.

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *