A questão da ruralidade versus a urbanização é uma área de estudo que possui várias vertentes. Os aspectos sociais e econômicos prevalecem na maioria dos estudos. Entretanto, há, indiscutivelmente, uma questão de mentalidade que, segundo a antropologia urbana, funciona como uma soma dos fatores individuais da comunidade. O contexto urbano necessita ser observado à luz dessa mentalidade, comportamentos individuais que no seu conjunto agregam característica ao ambiente da cidade.

Por essa razão, no que diz respeito às pequenas cidades do interior, pode-se identificar uma forte preferência da população em residir na área urbana e vivenciar a mentalidade urbana. Devemos levar em conta que segundo o IBGE, o percentual da população urbana brasileira é de 78,4%.

É evidente que fatores como: a aglomeração concentrada de moradias, o uso de tecnologias modernas, a existência de atividades econômicas diversas e concorrentes, a concentração de órgãos de decisão, entre outros fatores, também colaboram na caracterização e crescimento dos ambientes urbanos.

O perfil da maioria das pequenas cidades do interior, particularmente do Nordeste, se caracteriza por uma estagnação sócio-econômica. Frequentemente essas cidades são compostas por uma população que consegue sobreviver de pequenos serviços e comércios, atividades de subsistência, uma agricultura de risco, artesanato. Ao se andar por estes aglomerados urbanos respira-se um senso de “precisa melhorar”. Contudo, a mesmice, por falta de opções ou oportunidades, impõe o estilo de vida simples e pobre em praticamente todos os aspectos da cidade, das casas geminadas à sede da prefeitura, do posto médico quase sem equipamentos ao cemitério, do “bar da pinga” à lanchonete da rodoviária.

A ação missiológica não é avessa à economia, sendo esta um aspecto a ser considerado com prudência e sabedoria. Um exemplo explica melhor o cuidado necessário, Chamou-me a atenção o projeto de uma aluna do curso de plantação de igreja do Instituto Bíblico do Norte em Garanhuns (PE), voltado para um vilarejo de aproximadamente 2 mil habitantes chamado Alto de São Francisco (perto de Lajedo, PE).

Dentre os dados coletados naquele projeto, três destacavam o perfil de uma pessoa “rica” do local: (1) Possuir casa com quatro cômodos – sala, cozinha, quarto e banheiro dentro da casa; (2) Ter uma renda mensal de R$ 240,00 – um salário mínimo na época – e; (3) Ter bicicleta. De imediato fica claro que se um obreiro possuísse uma bicicleta de 18 marchas, ele seria proprietário de um “transporte de luxo – Uma BMW local do último modelo”. Tendo motocicleta ou um carro usado, ele estaria acima de todos os padrões locais, sendo considerado “muito rico”.

É bem oportuno indagarmos aqui se uma adaptação da proposta missiológica da evangelização encarnacional não seria de grande benefício para as pequenas cidades do interior. Essa proposta não deve ser entendida como uma estratégia-solução para o avanço do evangelho em qualquer contexto economicamente carente, entretanto abraça a mesma postura missionária defendida por Viv Grigg, o qual morou por oito anos nas favelas de São Paulo. Ele defende a proposta que o missionário enviado a locais pobres deve vivenciar e se limitar às realidades sócio-econômicas do seu público alvo, enquanto ali servir. Se isso fosse viabilizado como proposta missionária, quão facilmente igrejas da capital e das cidades maiores poderiam abraçar um projeto economicamente acessível como esse, considerando que o obreiro se moldaria às mesmas condições de manutenção do “morador rico” do local?

As pessoas das pequenas cidades do interior são carentes de ações missionárias mais efetivas e eficientes por parte das igrejas metropolitanas, e isto revela dificuldades e muitas carências de ambos os lados. De um lado, a maioria das igrejas evangélicas das grandes cidades está alienada da realidade do interior e é pobre de obreiros preparados para se dedicarem a viver a missão que se identifica com o público alvo carente. Do outro lado, as cidades do interior apresentam dificuldades bem maiores, em particular as cidades pequenas que ficam centenas de quilômetros longe da capital. São milhares de famílias, geralmente vivendo sem escolas, água, atendimento médico ambulatorial, facilidade de compras, e mais sério: desconhecendo a graça de salvadora de Jesus.

Perto ou longe, planejar alcançar com o evangelho as pequenas cidades implica em também fazer a mensagem do evangelho chegar a essa população urbana, mas não sem entendê-las, sem compreender e sem considerar a sua formação. A elaboração de uma ação missionária para o interior não pode desconsiderar o lado sócio-econômico do seu público alvo. Mais uma vez ecoa a voz de John Stott, o qual afirmou que a missão da Igreja é composta de evangelização e ação social, uma ação integral, como propôs o pacto de Lausanne em 1974.

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Sérgio Paulo Ribeiro Lyra é pastor e coordenador do Consórcio Presbiteriano para Ações Missionárias no Interior. Autor do livro Cidades para a Glória de Deus, publicado pela Visão Mundial. É missiólogo e professor do Seminário Presbiteriano em Recife (PE).

 

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  1. Com 80% da população urbana, qual o sentido de deslocar recursos par o interior? O que é que o interiorano deseja fazer, na primeira oportunidade? Resposta: mudar, ir para a ‘cidade grande’. Moro no Nordeste, conheço um pouco, não muito o interior. Confesso que é perda de tempo e recursos.

    Esses cantões são servidos pela TV e internet, ainda que incipiente. Escolas? Imbatível as públicas, mesmo porque a particular não tem chance de vingar.

    Penso no custo operacional que um projeto que visasse o interior renderia, guardada a relação custo-benefício. Sim, senhor, tem isso também. Afinal, dinheiro suado na forma de dízimos e contribuições voluntárias não nascem em árvores!

  2. Prezado Eduardo,

    Compreendo a sua procupação pelo aspecto custo, e é justamente esse um dos fatores que destaquei. A sua interpretação do percentual do IBGE me paraceu apenas considerar as grandes cidades. No nordeste brasileiro mais de 80% das cidades tem até 20.000 habitantes. Indago: ficarão essas cidades de fora da ação missionária, delegando tal atividade para a tv e a internet? Sociologicamente e economicamente, ao contrário do que se pensa,, o morador do interior não deseja vir para a metrópole. Isto geralmente acontece quando os meios de subsistência e educação falham. Quando se fala de interior, não se pode ter a mentalidade urbana das grandes cidades. É verdade que o morador do interior sabe acerca do locus urbano, da realidade da vida nas capitais, porém o seu conceito e contexto é bem outro. Por exemplo, é muito comum o interiorano dizer que “vai na rua” para simplesmente dizer que vai a parte central da cidade. Os milhares de cidades pequenas do interior vivem sem rush, engarrafmentos, shoppings, cinemas, serviços governamentais, acesso a saúde diversificada, computador, etc, etc.
    Biblicamente falando, o bom uso do dinheiro é recomendado, porém quando se fala de levar o evangelho, essa não é uma tarefa de pessoa cristã para pessoas não cristãs, relacionamentos, pois também a nossa missão envolve o discipulado e a formação de igreja (Mt 28.18-19). Afirmei que tal ação não deve ser implementada sem considerar os custos. Porém, quando nos lembramos do que Jesus fez para salvar o pecador, os nossos custos são ínfimos. Reconheço que é preciso sabedoria para saber como empregar sabiamente os recuros que “não nascem em árvores”, mas é preciso destacar claramente: o Reino de Deus chega em um lugar através da pregação do evangelho e das ações sociais por parte da igreja.
    Além disso, o reultado e o sucesso missionário não podem tomar paralelos numerários das empresa e estes serem os trilhos. O apóstolo Paulo disse que um planta, outro rega, outro colhe (tudo isto tem custos), mas é Deus quem faz crescer ou não.
    Agradeço a sua contribuição e preocupação e faço-lhe uma humilde sugestão de decidir conhecer o que são as pequenas e pobres cidades do nosso interior, em particular do sertão nordestino.
    Precisamos perseguir o propósito de servir e ajudar a igreja a ser uma comunidade em forma de serva, dirigindo-se ao mundo com oferta de salvação em Jesus e misericórdia aos que dela necessitam. Para isto o cristão dedica a sua vida em locais perto, longe ou muito longe.
    Louvado seja o Senhor.

  3. Preliminarmente, estou espantado com o comentário do Eduardo. Se Deus colocasse na planilha a relação custo-benefício para alcançá-lo, teria feito? O articulista está estimulando um debate urgente e atualíssimo. Já fui pastor em “igreja grande na Capital”. Com milhares de membros. Há 12 anos deixei tudo para fazer missões a apenas 60 quilômetros. E o quadro de ruralidade é bem como foi descrito. Assumi morar de improviso em dois cômodos, com banheiro externo, ando de bicicleta e a integração com a comunidade local tem sido surpreendente. Porém, é bom acordar do sonho. As igrejas maiores, de sistema empresarial e oligárquico, continuam fazendo os cálculos. E onde estariam os vocacionados para ir em busca das almas que não possuem capacidade de “contribuição” com dízimos e ofertas? Então, as pessoas valem pelo que possuem e pelo que estão dispostas a desembolsar? Lamentável realidade. Que Deus tenha misericórdia de nós e deles.

  4. “Compreendo a sua procupação pelo aspecto custo, e é justamente esse um dos fatores que destaquei. A sua interpretação do percentual do IBGE me paraceu apenas considerar as grandes cidades. No nordeste brasileiro mais de 80% das cidades tem até 20.000 habitantes.”

    RESPOSTA. Certa ocasião fui convidado, como advogado-contribuinte, para partilhar de um grupo e não poderia chamar de ‘missão’ no sentido de organização bem tipificada como na IPB, por exemplo. Confesso que fiquei escandalizado no sentido de, quando chegava em números, entrada e saída, etc., típico de uma organização necessária à sobrevivência percebi que pés e cabeça estavam rigorosamente postos… nas nuvens!

    “Indago: ficarão essas cidades de fora da ação missionária, delegando tal atividade para a tv e a internet? Sociologicamente e economicamente, ao contrário do que se pensa,, o morador do interior não deseja vir para a metrópole.”

    RESPOSTA. Acabo de vir de Goianinha e Tibau do Sul, aqui perto. Em conversa com os cinco jovens do hotel (fui passar um final de semana por lá), três estudam em Natal, um é arrimo e o outro acha que conseguirá passar no PROUNI. A prefeitura de Goianinha facilita a vida de todos para estudar na capital. Gostariam de sair de onde moram? Sim, responderam os quatro. Não tem emprego, não tem futuro onde moram. Ou melhor, continuarão a servir as mesas se não saírem de lá. A UFRN tem três campi avançados. Agora, formados, a primeira coisa que fazem é mudar do interior. E os concursos ajudam!

    “Isto geralmente acontece quando os meios de subsistência e educação falham.”

    RESPOSTA. Tomar causa por efeito não resolve nada. Acho que a minha experiência e meus dados divergem do seu. Aqui em Natal, o maior shopping é o Midway Mall. É o chamado shopping dos pobres, mas o shopping é muito bom e muito chique. O interior do Estado ‘baixa’ todo no final de semana e entristece quando volta para Monte Alegre, Santa Cruz, Currais Novos, etc.

    “Biblicamente falando, o bom uso do dinheiro é recomendado, porém quando se fala de levar o evangelho, essa não é uma tarefa de pessoa cristã para pessoas não cristãs, relacionamentos, pois também a nossa missão envolve o discipulado e a formação de igreja (Mt 28.18-19).”

    RESPOSTA. Discordo. Vc pode ir de textos bíblicos e eu vou de outros. Tenho 4 primas missionárias de uma certa denominação, na África. A igreja delas faz conta direitinho e está ‘no mercado de missões’ (permita-me a expressão) há mais de 150 anos e vão muito bem obrigado, muito embora eu acho a teologia deles um lixo.

    “Afirmei que tal ação não deve ser implementada sem considerar os custos.”

    RESPOSTA. De fato, e nem eu achei que o fraco do seu artigo fosse esse. Se eu, contudo, for convidado ou chamado para ajudar ($), eu, Eduardo, faço as contas e não dou um centavo se os pés do idealista estiverem fincados… no espaço sideral. Afinal, eu também presto contas!

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