Ela tinha uns 8 anos. Na época (1997), a idade da minha filha caçula. Entreguei-lhe uma marmita com comida e sentei-me ao seu lado, na calçada. Queria saber seu nome, se tinha ou não família, o que a fazia vir para as ruas, bem como os perigos aos quais estava submetida. De repente, fui surpreendido por uma pergunta: “Tio, o senhor não quer transar comigo? Eu cobro bem baratinho”. Pensei nas minhas filhas que estavam em casa, protegidas. Por alguns segundos imaginei sobre qual seria minha reação se alguém ousasse tocar nelas. Imediatamente voltei-me à realidade nua e crua que achava-se diante de todos nós que ali estávamos: Meninas, meninos e adolescentes pobres, vulneráveis e expostos aos mais diversos tipos de violência. É verdade, alguns eram usuários de drogas. Outros, em busca de comida e de algum dinheiro para ajudar em casa. 

 

O presente dos sem futuro 

Estamos em 2020. Ainda em plena pandemia, mas com esperança de, em breve, termos uma vacina. Moro em São Paulo, cidade com a 5ª maior população do mundo e entre aquelas que possuem o maior número de bilionários e multimilionários do planeta. No entanto, a má distribuição de renda impede que a grande maioria dos seus habilitantes usufrua dessa riqueza. Que o diga aqueles que vivem nas periferias sem acesso à educação de qualidade, à boas bibliotecas públicas, com pouquíssimas áreas de lazer e onde a vida, muitas vezes, vale pouco. Leia as estatísticas, analise os relatórios oficiais e também aqueles elaborados e publicados por organizações nacionais e internacionais sérias. Vá à Praça da Sé durante o dia, mas igualmente às noites. Observe o número de Pessoas em Situação de Rua, mas não deixe de ver a quantidade de crianças e adolescentes naquela mesma situação. O que você consegue enxergar? Percebe seus corpos esqueléticos devido à fome e à ausência dos nutrientes necessários? O que você consegue perceber? Meninas, meninos e adolescentes maltrapilhos e malcheirosos? O que você consegue avistar? Meninas, meninos e adolescentes sem rumo e sem direção, “como ovelhas sem pastor” (Jesus)? O que você consegue identificar? Meninas, meninos e adolescentes rebeldes, alguns de tantos serem violentados, até violentos se tornaram? O que você consegue notar? Meninas, meninos e adolescentes antissociais, com dificuldade para obedecer a regras e autoridades? O que você consegue entrever? Meninas, meninos e adolescentes usando drogas para esquecer da fome e da falta de perspectiva de futuro? Diante de tal presente, o que você acha que o futuro lhes reserva? O que você vai fazer?  

 

O futuro dos sem presente

Vinte e três anos se passaram desde aquela experiência com meninas, meninos e adolescentes em situação de rua na cidade do Recife, mas ainda carrego na memória a imagem daquela e de tantas outras crianças e pubescentes, filhos de famílias com nada ou com muito pouco para se defenderem. Às vezes, me pego perguntando a mim mesmo: Onde estarão aquelas crianças? Como lidaram com a fome, com a falta de possibilidades e de oportunidades? Como enfrentaram o preconceito, a rejeição e o desprezo? O que o futuro lhes reservou?

No meu contexto atual, nos últimos meses, voltei a me deparar com essa situação que insiste em me incomodar e, penso eu, a nos desafiar como Igreja e sociedade. Tenho, diariamente, encontrado garotas e garotos na idade de minhas netas e netos vivendo nas ruas, em situação vexatória. Falta-lhes o básico, inclusive a garantia de acesso a refeições decentes no cotidiano, a um lugar para tomar banho e fazer suas necessidades fisiológicas. Nas madrugadas, frio é intenso, assim como constante é o sentimento de medo e de pavor. Se tudo isso não bastasse, fazem parte do grupo dos onze milhões de “nem-nem”: Nem trabalham nem estudam. Mas, ter a rua como casa não é fácil.

Nas ruas, a pobreza é extrema, a ameaça à existência é continua e a infância é roubada. Não há espaço para fantasias, para se acreditar em “coelhinho da Páscoa” e nem para se esperar por “papai Noel”. A realidade é simplesmente dura e impiedosa: Impede que castelos e sonhos sejam construídos, que planos sejam feitos e que projetos sejam realizados. Se, normalmente, a adolescência já é um período de grandes mudanças biopsicossociais onde o humor, a teimosia e a raiva afloram, o que acontece com um adolescente exposto a uma situação de rua? O que pode acontecer com quem é maltratada, invisibilizada e desrespeitada durante toda a sua vida? Que reações terá?  Pense nisso, ainda que por alguns instantes.  

As pesquisas indicam que, fora os 52 milhões que vivem na pobreza, há, no Brasil, ao redor 70 mil moçoilas e moçoilos vivendo nas ruas. 86% delas, são negras. Você sabia disso? Estão nos semáforos, nas praças, debaixo das pontes. Infelizmente, permanecem invisíveis, como se existentes fossem. Só aparecem na grande mídia quando intimidam e cometem delitos. Não poucas vezes, são quase que espontaneamente associados a gente perigosa, sem futuro, sem nada a perder e, portanto, capazes de qualquer coisa. No entanto, tome um tempo para conversar com elas e verá que – apesar de tudo – essa gente quer um futuro diferente: Um lugar para morar, uma escola para estudar e um empreendimento onde possa trabalhar. Em outras palavras, os sem presentes desejam um futuro melhor. Mas, provavelmente, sozinhas não conseguirão.    

 

O que fazer para que os sem presentes tenham um futuro melhor? 

Essa é uma pergunta vital que a sociedade não pode deixar de se fazer. Consequentemente, ela deve nos incomodar e nos desacomodar de maneira que não seja tido como normal 70 mil crianças e adolescentes viveram nas ruas.

  • Assim, primeiramente, é preciso envolver todos os cidadãos e cidadãs de bem, do mesmo jeito que os diversos setores da sociedade: Acadêmico, econômico, jurídico, militar, político, religioso… desta forma, o assunto será debatido nas escolas, igrejas, templos religiosos, câmara de comércio, câmara de vereadores, universidades… 
  • Segundo, como bem disse a psicanalista Aline Reck Padilha Abrantes, necessitamos reconhecer que como sociedade “falhamos todos os dias com nossas crianças quando fazemos pouco em prol dos seus direitos”. Neste sentido, será que não deveríamos retomar a promoção de conferências, cursos e seminários sobre o ECA – Estatuto da Criança e do adolescente e igualmente as grandes discussões sobre como fazer para que os direitos ali incluídos sejam garantidos e, de fato, implementados? 
  • Terceiro, doe do seu tempo para estar com crianças e adolescentes. Às vezes para ouvi-los, outras vezes para brincar, para contar uma história, organizar uma partida de futebol ou simplesmente estar presente. Presença essa que faz diferença, pois demonstra interesse, torna-os visíveis e faz deles sujeitos importantes.
  • Quarto, se envolva em projetos que trabalham para defender, garantir e promover os direitos das crianças e adolescentes. Ajude no que for possível. Seja voluntário. Convide seus amigos para fazer o mesmo. Seja sensível. Em períodos como Páscoa, Dia das Crianças e Natal, faça um esforço extra: Promova algo para as crianças em situação de vulnerabilidade do seu bairro.    
  • Quinto, seja a mudança que você quer ver na sociedade. Participe dos Conselhos Municipais, estaduais e federal que discutem e implementam as políticas públicas sobre o assunto. Aja para que aumente o número de vagas nas creches da periferia da sua cidade. Agir é também uma forma de acolher, de mostrar que se importa, mas também de criticar e de denunciar. Como disse um missionário inglês do século 19, não basta falar, “o nosso caminhar sempre conta mais do que o nosso falar” (George Müller). 

 

Conclusão  

Cuidar, proteger e promover crianças e adolescentes não é somente tarefa dos pais. É igualmente responsabilidade da sociedade. Tal atitude revela o grau de saúde ou de enfermidade coletiva. Como diz um provérbio africano, “é preciso muitas mãos para ninar uma criança”. Assim sendo, não poupemos esforços nem investimos para cuidar delas. Afinal, elas representam o futuro da nação. 

 

 

Maruilson Souza, Ph.D. Secretário Nacional de Educação e Programas do Exército de Salvação. Coordenador do 3º. Simpósio Brasileiro de Justiça Social.