Patrick Reason, parceiro da Rede Mãos Dadas e grande defensor do direito de toda criança pelo convívio familiar e comunitário, nos conta como está a situação das crianças e adolescentes em acolhimento institucional no Brasil:

A realidade está mudando muito rápido e, até em torno de notas técnicas formais, não estamos conseguindo produzi-las em tempo e no compasso da propagação do próprio vírus. Estamos percebendo que muito trabalho que produzimos no começo da semana passada já não estava relevante até a metade da semana e assim continua sendo.

Nós temos um histórico longo de institucionalização em muitas áreas dos nossos serviços sociais no Brasil. Mas desde a Constituição Federal de 1988, surgiu uma nova compreensão resultando em um grande esforço de reordenamento de serviços, sempre reduzindo o número de pessoas atendidas, e entendendo que a família é o espaço ideal para as pessoas viverem.

Afinal, a família não tem cinquenta nem cem pessoas, certo? Há sempre a ideia de redução de números para chegar num grupo menor, independente da faixa etária: idosos, crianças, jovens com alguma deficiência mental, etc. Há sempre uma busca pela redução. Tivemos, nestes anos todos, muitas reformas e reordenamentos que trouxeram a redução de agrupamentos de pessoas e que promoveram a desinstitucionalização.

 

Primeiro desafio: número de pessoas atendidas

Dito isso, eu diria que, de todas as áreas, a mais atrasada é a do idoso. É bem comum no Brasil instituições que têm de cem a duzentos indivíduos em um lugar só. Não quero ser alarmista, mas já ouvi pessoas esclarecidas chamar isto de uma “bomba-relógio”, “panela de pressão” ou até “Placa de Petri”, quando se referem ao que pode acontecer se o vírus de fato entrar em um destes asilos ou ILPI’s (Instituição de Longa Permanência do Idoso). 
 
Residências inclusivas de pessoas com deficiência mental também merecem nossa atenção. Podem imaginar a dificuldade de um grupo de pessoas com suas limitações na área de higienização e isolamento social? Um grande número de pessoas nestas situações podem ter alguma outra doença associada.  Precisamos pensar também no público em situação de rua onde está evidente as dificuldades de higienização.

No acolhimento institucional de crianças, temos as casas-lares de até 10 crianças por casa e, a sua grande maioria, os abrigos institucionais com até 20 crianças e adolescentes por casa. Isto ainda representa espaços com um alto número de crianças e adolescentes juntos.

Muitas medidas sociais nestes últimos dias estão afetando diretamente as crianças e adolescentes como, por exemplo, o fechamento de escolas, creches, universidades, etc. Estas medidas são tomadas não tanto na prevenção do contágio pela criança e adolescente, uma vez que o número de crianças e adolescentes falecendo por causa do vírus é muito baixo. No entanto, os dados demográficos da Itália mostraram que o contágio dos idosos ocorreu muitas vezes por estarem juntos as pessoas mais jovens. Esse é o maior motivo de promover distanciamento social, onde por exemplo o jovem, com alta circulação e rede de contatos, pode trazer o vírus para dentro da sua casa. É o idoso que acaba sofrendo as consequências. Todas as medidas de redução do número de crianças têm sido pensadas como formas de conter a propagação do vírus.

 

Segundo grande desafio: a situação dos funcionários

Enquanto isso na área de acolhimento institucional temos crianças e adolescentes extremamente vulneráveis, com toda a sua complexidade, acolhimento de mulheres vítimas de violência e seus filhos, casas de passagem e outros serviços que não podem parar de funcionar. A tendência destes é de agrupamentos de 20 pessoas em cada unidade, em média. Em geral, esses espaços são servidos por funcionários que trabalham em turnos, (alguns 12h por 36h, outros diurno e noturno). Os turnos aumentam os riscos de contaminação por conta do trânsito de trabalhadores essenciais indo e voltando.

De fato, estamos falando de muitas pessoas, a maioria educadores sociais, que na realidade do nosso Brasil são pessoas comuns que têm as preocupações dos seus próprios lares, seus problemas de saúde, alguns acima de 60 anos, com diabetes, asma e outras doenças de risco. Sendo assim, algumas instituições já começaram a entrar em colapso por falta de funcionários aptos a trabalhar e cuidar do público atendido.

 

Terceiro grande desafio: isolamento social, como?

Como fazer um isolamento dentro desses espaços? É uma grande questão. Quando o número de pessoas em isolamento torna-se maior que o ideal recomendado, como fazer isso sem ninguém tocar em ninguém, em meio às dificuldades de higiene? Como inibir crianças de brincarem juntas e tocarem umas nas outras? É impossível. Então, você teria de isolar um ambiente inteiro para pessoas infectadas.

Além disso, nós temos, por natureza, em nossos serviços, um alto número de pessoas entrando e saindo. Mesmo suspendendo visitas, as instituições recebem pessoas novas que vêm de situações de vulnerabilidade e violência. Estamos num momento de grande preocupação. Ideias e propostas têm surgido em algumas instituições. O O número destas ideias ainda é tímido, pode ser que comecemos a espalhar as crianças pelas casas dos educadores, da equipe técnica ou com os padrinhos, etc, de forma a garantir que as crianças não estejam sofrendo um risco maior.

 

Quarto desafio: recursos financeiros

Quase todas as instituições dependem de recurso público e com financiamento engessado para um tipo de serviço distinto. Como fazer uma mudança grande e ao mesmo tempo, respeitar as regras de gastos públicos e se alinhado com o poder das autoridades, inclusive do poder judiciário? A instituição não pode fazer o que bem entende. Contudo, estamos em momento de emergência e a dificuldade de executar uma mudança de uma estrutura de atendimento dentro de poucos dias é um desafio inédito.

Tudo é muito difícil, e o momento é de muito estresse. Chego a conclusão de que o acolhimento nunca mais será o mesmo no Brasil depois deste vírus. Não tem como.  Serviços como “família acolhedora”, que ainda representa menos de 3% do acolhimento de crianças no Brasil, já estavam crescendo e é bem provável que depois disso tudo eles terão um grande impulso. Isso é um sinal de esperança que pode ser fruto desta emergência.

Ainda estamos falando de números muito baixos de óbitos. Espero que daqui a alguns meses eu não olhe para trás somente com pouca esperança e muito lamento por conta de números exorbitantes de pessoas mortas.

Nas nossas favelas, nos serviços de convivência, nas igrejas e tantos outros espaços, espero que consigamos nos organizar para distribuir a esperança na forma de alimentos e outros produtos de higiene e limpeza, sendo sensatos na forma de fazer isso, sem colocar em risco as pessoas e sem propagar o vírus. Espero que possamos manifestar o Reino de Deus no amor ao próximo e lutar por melhores estruturas para genuinamente sermos luz no mundo e sal na terra. 

 

Patrick J Reason é presidente da Associação Beneficente Encontro com Deus e secretário nacional do Movimento Nacional Pró-Convivência Familiar e Comunitária.

 

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