Por Elsie Gilbert

Maria Silvina

Lembrarei da minha avó, como uma das “pequeninas” do reino de Deus.

No ano em que minha avó nasceu, o Brasil tinha apenas 21 anos de república e o presidente em exercício era Nilo Peçanha, do Partido Republicano Fluminense, o sétimo presidente do Brasil, vice de Afonso Pena que assumiu o comando quando este último faleceu em 1909. Durante sua vida, o Brasil teve 33 presidentes. Ela passou pela Revolução de 1930, pelo golpe de estado de 1937 que institui o Estado Novo de Getúlio Vargas, pelo golpe militar de 1964, pela abertura política dos anos 80. No cenário internacional ela deve ter ouvido falar das duas grandes guerras mundiais, da guerra fria e o consequente armamento nuclear, da chegada do homem à lua, da queda do muro de Berlim.

Todos estes acontecimentos tiveram um papel na vida dela semelhante ao das nuvens que passam acima de nós, trazendo chuva, tempestade, ou em sua ausência o estio. A vida, no entanto, acontece aqui embaixo, e quanto às nuvens, não se tem controle ou influência sobre elas.

Nasceu e foi criada na roça onde aprendeu a trabalhar com afinco. Sabia costurar à mão como ninguém. Cozinhava à moda antiga, à moda mineira, com banha de porco no lugar de óleo. Sabia economizar, reutilizar tudo e fazer valer cada centavo gasto. Como a maioria das moças de sua época, casou cedo. Teve sete filhos, dos quais cinco sobreviveram à primeira infância. Numa comunidade rural pertencente ao município de Campo Belo, MG, ela tinha uma vida social ativa. Era bonita com sua tez morena clara. Seria descendente da mistura entre os índios cataquazes e negros, algo comum àquela região? Não sabemos. Seus olhos eram de um verde intenso. Será que tinha sangue italiano ou libanês como resultado da fixação destes dois grupos por ali no final do século 19? Outro mistério. As Marias nascidas em berço humilde não têm “pedigree”. Ela era jovial, gostava de frequentar bailes e dançar nos casamentos, quermesses e demais acontecimentos comuns à vida rural de sua época apesar desse seu jeito extrovertido causar tensão no casamento.

Quando, no início da década de quarenta, o marido acompanhou o êxodo rural do oeste de Minas Gerais, para São Paulo capital, ela o seguiu e logo se tornou lavadeira de roupas para ajudar no orçamento familiar enquanto seu marido trabalhava como pedreiro. Mas os tempos eram difíceis e a vida familiar mais difícil ainda. Meu avô não trazia tudo o que recebia para casa e minha avó logo descobriu o porquê.

Mulheres e bares. As traições do marido marcaram minha avó profundamente e ainda jovem ela começou uma caminhada rumo à amargura seguida de problemas psiquiátricos na meia idade e demência progressiva na velhice. Minhas lembranças dela começam quando já tinha se tornado uma pessoa mal amada, sobrecarregada e amarga. Ainda assim, de vez em quando conseguíamos ver alguns resquícios da garota divertida, que sabia rir e fazer os outros rirem. Suas brigas com meu avô sempre tiveram dois lados: o trágico e o cômico.

Minha tia, a filha mais velha, foi quem introduziu o evangelho na família. A filha mais velha sempre sofre mais quando a família não vai bem. Minha avó proibiu minha tia de estudar, exigindo que ela ajudasse a carregar a sua carga. Minha tia encontrou ajuda no Exército de Salvação, no bairro da Saúde, zona sul de São Paulo. Lá ela também encontrou Jesus. Mais tarde foi acolhida em uma igreja e em tempo se sentiu vocacionada para missões. Por meio dela, minha avó também encontrou a Cristo assim como o carinho de uma igreja, a Igreja Cristã Evangélica do Jabaquara. Lá ela era divertida, lá ela ria e fazia os outros rirem.

Meu avô só veio a declarar sua fé no Senhor Jesus Cristo aos 92 anos de idade! Mas ele o fez em tempo de fazer profissão de fé e ser batizado!  Por meio da minha tia, o evangelho entrou na família e hoje, ao nos despedirmos da nossa matriarca centenária, podemos dizer que apenas um tio não se rendeu, até onde sabemos, à graça redentora de Cristo.  Este foi o que lhe causou mais dor. Persistiu no alcoolismo, herança que transmitiu a um de seus filhos. Seu neto, bisneto querido de minha avó, foi exterminado aos 14 anos com oito tiros, por policiais violentos da década de 90.

Então, como lembrar da minha avó? Como a mãe dedicada que a duras penas conseguiu prover o que pôde para seus filhos? Ou a mulher amarga, vítima de um marido irresponsável que se torna a algoz da filha e que perpetua em sua família o ciclo da violência? Uma crente fiel, que se dedicava à leitura da Palavra, e que participava diligentemente numa comunidade de fé mesmo tendo muito pouca instrução? Ou uma crente cuja falta de perdão levou-a a desenvolver graves problemas emocionais?

Vou lembrar da minha avó como uma entre milhares de Marias, espalhadas pelo Brasil. Mulheres que—como Milton Nascimento cantou—têm pouca voz, pouco poder, e persistem mesmo diante de muita dificuldade, injustiça, e violência. Mas vou me lembrar dela também como uma pessoa única, que teve a sua história, que foi e é amada por Deus. Vou lembrar da minha avó, como uma das “pequeninas” do reino de Deus cuja chegada à presença do Pai foi festejada ainda que sua morte não tenha nem sido noticiada pelos jornais de Anápolis, GO, onde viveu seus últimos 18 anos sob os cuidados da família.

E nestas lembranças eu reafirmo meu compromisso de continuar trabalhando em favor dos pequeninos do reino, das Marias e suas famílias. Quero que todas elas saibam que num futuro não muito distante, Deus enxugará nossas lágrimas, sarará nossos corpos e mentes, restaurará os céus e a terra, e reconciliará consigo mesmo todas as coisas.

 

  1. Muito bom Elsie! Acho que nunca somos uma só, nem Maria Silvina, nem Tábata, nem Elsie… somos muitas, às vezes alegres, às vezes com feridas que nos amargam. Só somos sempre iguais em sermos amadas por um Deus, Pai amoroso, que não se cansa de rir e de chorar com a gente e que nos aguarda no lar celestial e eterno.

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