Por Allana Dias

Pequenas alegrias é um texto inspirado em um dos meus filmes franceses favoritos: O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001, Jean-Pierre Jeunet), cuja protagonista Amélie consegue perceber propósitos em fatos simples e corriqueiros da vida. Ela é capaz de ter sensações arrepiantes, somente por quebrar com a colher a casquinha de açúcar que reveste o crème brûlée ou sentir o prazer de tato oferecido ao mergulhar a mão em meio aos grãos. Amélie se apresenta com uma sensibilidade rara e extrai da realidade o máximo que ela pode oferecer, sendo capaz de transformar momentos aparentemente banais em vivências extremamente enriquecedoras.

Lembro-me, na infância – quando meu encanto com os detalhes da criação era mais intenso e perceptivo – que fechava os olhos e imaginava o universo inteiro dentro de mim. Eu conseguia ver estrelas dançando na imagem escura que se formava antes de adormecer. Havia pontinhos de luz no meio daquela vasta escuridão.

Mas hoje, em dias tão nebulosos, incertos e, por que não, estranhos, “são tempos difíceis para os sonhadores”, já dizia o filme de Jean-Pierre, a razão é clara: estamos confinados e, por enquanto, não podemos usufruir de todas as belezas que o mundo lá fora oferece. Mas, ainda assim, é possível deixar que esses pontinhos de luz surjam no nosso cotidiano, mesmo dentro desse precioso mundo chamado lar — há um universo inteiro dentro dele, acredite.

É tempo de redescobrir as pequenas alegrias presentes em nossos dias comuns, que às vezes são desapercebidas por nós, em meio a tantas tarefas e agendas infinitas. É tempo de criar e recriar o prazer de não fazer nada e só contemplar a simplicidade da vida que está aqui, bem diante de nós. Porque são nesses momentos de ócio, quando podemos respirar a liberdade das obrigações, que a criatividade e a sensibilidade mais se manifestam.

Quando digo pequenas alegrias, não me refiro somente a entretenimentos fugazes, para distração. Porque não é tempo só para nos distrairmos, mas de nos conectarmos. Conectarmo-nos com Deus e as pessoas, virtualmente e principalmente com as que moram conosco. Mas, também, nos conectarmos com nós mesmos e com toda a graça que nos envolve. E essa conexão começa no aqui e agora, no partilhar de sorrisos da mesa de jantar da nossa casa; no sofá aconchegante que nos convida à reflexão e à leitura; debaixo da água quentinha de um banho demorado ou na varanda estreita repleta de cactos e suculentas, se você tiver uma.

É tempo de reaprender a sentir, com todos os nossos sentidos.

A sentir com calma o cheiro gostoso do café que se esparrama pela manhã em cada cômodo da casa. E a apreciar lentamente a fragrância das roupas limpinhas que acabaram de sair do varal. Ou a se deliciar com o aroma de um bolo recém-saído do forno que invade a vizinhança. A experimentar os sabores das combinações novas na culinária que você mesmo inventa, no laboratório de sua cozinha.

ouvir aquela música leve e calma, que sabe harmonizar bem com os balanços da alma e também aguçar os ouvidos para os cantos do bem-te-vi que acabou de pousar no fio de luz em frente à sua casa. A olhar o céu da janela com a vista mais bonita, e ver como ele se movimenta a todo instante, se modificando em multiformes e cores. Sentir o toque da brisa azul que sopra todas as manhãs e resgatar boas memórias da infância, de quando a vida parecia ser mais simples.

Sim, é tempo de nos conectarmos um pouquinho com o mundo lá fora também, ainda que pela nossa ventana, contemplar o nascer e o pôr do sol que se desenha diante de nossos lares e respirar o ar “puro” da esperança de dias melhores.

É tempo de olharmos para a natureza, que chora, e aprender a cuidar dela. Como dizia o cantor e compositor Gladir Cabral, de música popular brasileira cristã:

“Cuida do passarinho e também da flor
Eles esperam pelo teu amor
Faz do teu lar um ninho e do mundo, um chão
Onde se plante paz e comunhão

(…)

Faz um café gostoso, põe a mesa no teu jardim,
Deixa que assim as plantas tenham paz contigo,
Convida o universo, faz a vida ganhar maior sentido.

Cuida da tua morada, cuida do pequeno mundo”.

– Paz e Comunhão, 2007.

É tempo de espalharmos amor, mesmo de longe. Deixar nossos talentos engavetados fluírem em poesias e afetos por aí. Seja lá qual for sua habilidade, não deixe de partilhá-la gratuitamente. Ao menos hoje, ao menos neste tempo. Da mesma forma, que a vida (Deus) lhe dá tudo de graça.

É tempo de redescobrirmos a vida profunda que nos estava encoberta com a vida agitada que levávamos e perceber as pequenas alegrias em tudo o que existe. Sentir e agradecer por essa graça abundante que nos abraça a cada instante. Porque a vida é cheia de pequenos propósitos e sabemos disso pela certeza de que Ele está em todas as coisas criadas.

Em tempos de quarentena, é preciso relembrar um dos principais ensinamentos do filme francês: a vida é simples e a felicidade se esconde nos pequenos prazeres, contemplativos.

Não deixe eles escaparem de você!

  • Allana Dias. Psicóloga, psicanalista e cristã. Amor pela escrita. Crônicas, contos e poesias. Texto publicado originalmente em seu Medium.

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