Por Amanda Almeida

Posso começar dizendo o quanto amo quando temas são tão bem trabalhados nas artes que não me deixam outra escapatória a não ser pensar sobre eles na minha realidade. Posso também dizer que gosto muito da Tiê, e que além dos seus bons cds, ela acerta ainda mais em cada cover que faz. E que a versão dela de Medo de Amar n° 3 é uma delícia, especialmente assistindo ao vídeo dela gravidinha cantando no estúdio. Mas isso seria só para enrolar o início da divagação impulsionada por essa música:

É que no nosso modo cristão contemporâneo de lidar com relacionamentos, com o mundo da conquista e com o amor romântico, é fácil, fácil condenar quem dá a cara à tapa e se propõe a dar uma, duas, três, infinitas chances para que algo aconteça. Uma atrás da outra, com pessoas diferentes. Uma hora o tiro acerta alguém, não é? Mas não dá para contar com balas perdidas, condenamos. “Não despertais o amor até que ele venha“, justificamos.

Mas não seria o extremo oposto igualmente condenável?

Expressar verdades um tanto cruéis com sutileza deve ser uma virtude. E Péricles Cavalcanti, o compositor, faz isso bem demais em Medo de Amar n° 3. O refrão é tão simples que qualquer peso fica por nossa conta: “Você não tem medo de mim. Você não tem medo de mim. Você tem medo é do amor que você guarda para mim“.

E quando escolhemos nos manter longe da possibilidade do amor? É uma decisão até bastante acertada quando se sabe que é necessário fazer uma reforma e uma faxina interna, para que aí seja possível se relacionar com outra pessoa de uma forma saudável. Às vezes sabemos que simplesmente ainda não estamos prontos.

Mas outras vezes usamos isso como desculpa. O perigo é que ela parece muito cristianicamente correta. Se alinha demais com o ideal de santidade que construímos. E essa desculpa de não se envolver seria perfeita se não estivesse, entre outras coisas, baseada no medo.

Vivo com medo de me machucar. De fazer aqueles machucados na alma, que custam a sarar. Aí construo muros e coloco cercas de proteção ao redor do coração. “Que modo melhor de protegê-lo?”, pensava eu. Mas um belo dia percebi, com ajuda do meu grande amigo Lewis, que ao me fechar para não ficar à mercê das dores dos amores, eu mesma me machucava. Ia deixando meu coração indestrutível, impenetrável, irredimível.

Desde que li Os Quatro Amores, tento manter em mente a noção de que amar é sempre ser vulnerável. E não só no aspecto romântico da coisa. “Ame qualquer coisa e certamente seu coração vai doer e talvez se partir. (…) O único lugar além do céu onde se pode estar perfeitamente a salvo de todos os riscos e perturbações do amor é o inferno“.

É bem mais fácil – e até cômodo – justificar a postura de não se abrir à possibilidade do amor com “guardai vosso coração“. Talvez a gente até consiga fazer esse papo colar com quem está à nossa volta, mas se o motivo de manter tudo e todos bem longe é o medo, ah, Deus sabe. E uma hora nos tornamos conscientes de quão destrutivo isso é.

Você diz que eu te assusto, você diz que eu te desvio. Também diz que eu sou um bruto, e me chama de vadio“, canta Tiê. Se isso tudo for verdade, corra, que é cilada, Bino. Se não for, é só mais um monte de desculpas para a lista de motivos que criamos para não nos envolvermos, cada vez mais bem elaborada, e que seria louvável se na verdade não escondesse nossos receios e inseguranças.

Você diz que eu te envergonho, também diz que eu sou cruel. Que no teatro do teu sonho, para mim não tem papel“. Saber o que não se quer talvez seja tão importante quanto saber o que queremos. Faz parte do processo de autoconhecimento. Mas saber o que se precisa é extremamente mais difícil. E talvez o que precisamos vai justamente no caminho oposto daquilo que queremos, do que idealizamos. É totalmente justificável não corresponder às investidas de alguém, mas em que medida isso não indica estar tão cheio de si, das nossas próprias verdades, que não nos abrimos ao que pode nos surpreender, sair do nosso controle?

Tiê completa o refrão cantando “Você tem medo é de você, você tem medo é de querer“. Ai, ai.

Já percebeu o quão mais simples é expor o que não gostamos do que elogiar e nos posicionar a favor do que apreciamos? Apontar os erros e defeitos funciona na base da exclusão, do negativo, do que se pode descartar. Defender algo é reafirmar, aprovar, tomar para si. Apreciar é se comprometer com aquilo. E se já fizemos o maior compromisso que se pode fazer, da nova vida em Cristo, medo de se comprometer, quando é algo agradável à vontade dEle, não faz mais sentido.

Deus nos amou primeiro, e por isso agora podemos desfrutar do amor – seja ele na forma de afeição, amizade, caridade ou eros. Nosso relacionamento com o Senhor deve ditar todos os outros, e em Deus vamos nos amadurecendo em amor. “No amor não há medo, pelo contrário, o perfeito amor expulsa o medo“.

Assim, essa realidade de “Você tem medo é do amor que você guarda para mim. Você tem medo é de querer me amar” não tem que ser também condenável? Entre o extremo de andar por aí se machucando pelo desespero de amar e ser amado, e o oposto, de se fechar, arrumar desculpas infindáveis e se machucar pelo medo, que no final das contas também se traduz em desesperança, não precisamos escolher nenhum dos dois.

Na caminhada cristã, não vale aquela lógica de “dos males, o menor”. Vale é a nossa reconciliação com Deus, que vai nos forjando e nos preparando para Ele. Mesmo quando lidamos com problemas e nos encontramos em sinucas de bico, porque “também nos gloriamos nas tribulações; sabendo que a tribulação produz a paciência, e a paciência a experiência, e a experiência a esperança. E a esperança não traz confusão, porquanto o amor de Deus está derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado“. Então, que haja esperança.

E é difícil. Nossa, como é difícil. Acho que já melhorei um pouquinho no processo de me abrir e ser vulnerável nas minhas relações – qualquer uma delas -, mas ainda há muito pela frente. Quando escuto Medo de Amar n° 3, sou lembrada do tanto que me falta. E isso me motiva a prosseguir na busca pela esperança, pela medida certa para o equilíbrio, pelos amores em plenitude. Sem desculpas inventadas. Sem receio e sem medo.

PS: Esse texto foi escrito em 2016. Desde esse passado não tão distante, saiu Não é Mais Segredo, de autoria do Paulo Nazareth, que serve direitinho como resposta a Medo de Amar n° 3. Vale ouvir também:

  • Amanda Almeida, 24 anos. É formada em Comunicação Social e faz mestrado em Estudos de Linguagem (o que deve ser tudo uma desculpa pra gostar de escrever).
  1. Marisete Guabiraba de Macedo

    Estou aqui tão admirada por esta reflexão profunda e verdadeira. Precisamos de mais pessoas que nos façam lembrar de olhar para os dois lados com bastante atenção antes de decidirmos em qual deles estamos inseridos e se for necessário mudarmos de direção, que o façamos enquanto podemos.

  2. Meus parabéns, Amanda. Amei seu texto. Vou escrever a respeito em meu Blog qualquer dia desses. Intrigante, provocativo, competente, ao fugir do lugar comum, e maravilhosamente bíblico, talvez de uma perspectiva a que a maioria dos evangélicos de hoje não estão acostumados a se permitir olhar e meditar. Grato.

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