Por Maurício Avoletta Júnior

Sei que a ideia do nome da série Black Mirror remete à tela de algum aparelho eletrônico, contudo confesso que para mim foi quase impossível não ligar o nome à fala do Apóstolo São Paulo em 1 Coríntios 13, quando o mesmo usa a ideia de um espelho para falar sobre o conhecimento humano. Depois de assistir a série, a ligação ficou maior, mais clara e mais triste.

São Paulo refere-se ao nosso conhecimento como a visão que temos de algo que é refletido em um espelho. Compreendemos apenas parcialmente as coisas, assim como quando observamos algo tendo um espelho como intermediário.

Ok, e o que isso tem a ver com a série? De forma interessante, Black Mirror não fala apenas do problema do homem em relação à tecnologia e seu avanço, como muitos propõem, mas sobre a natureza humana. E não fala de forma nada positiva, devo concordar. Ler Pascal, Jansenius ou qualquer outro agostiniano e assistir Black Mirror é basicamente a mesma coisa.

É interessante que enquanto para o Apóstolo o conhecimento humano é como um espelho, que compreende apenas em parte, mas ainda assim compreende algo, em Black Mirror esse espelho é completamente escuro, verdadeiramente preto, pois nossa natureza parece estar apodrecendo ainda mais com o passar do tempo. Ainda há algo de bom em nós, mas é preciso muita poesia para enxergar, pois vou te falar, viu…

Black Mirror é o profeta que nossa geração precisa. Contudo, diferente do que estamos acostumados, esse profeta pode dizer algo da parte de Deus, mas não pertence a ele. Aquele que veio denunciar os nossos pecados é alguém que não comunga do pão e do vinho à mesa conosco. Nos tornamos tão cegos e apáticos – assim como em muitas histórias da série –, que foi preciso que alguém de fora mostrasse que existe um problema dentro da nossa casa, pois nós mesmo não estávamos vendo isso. Está tudo uma bagunça!

O meu querido Chesterton disse certa vez que toda reforma pressupõe uma forma, ou seja, uma reforma deve servir para voltar o que é reformado à sua forma original. Como ele diz no livro Ortodoxia, o único jeito de termos novamente aquele velho poste branco que hoje está sujo e praticamente preto é pintando-o de branco. Nossa casa está uma bagunça e está caindo aos pedaços, por isso é necessário que a reformemos.

Como já disse a Igreja que veio antes de nós: a Igreja reformada está sempre se reformando. Se a nossa sala está caindo aos pedaços é porque não cuidamos dela como deveríamos, por isso devemos quebrar as paredes e reconstruí-las, para que elas voltem a ser como eram.

O problema da nossa geração não é a tecnologia, como muitas pessoas apontam, mas sim o que a tecnologia denunciou: nosso individualismo. Não acredito que seja coincidência que uma das ideologias políticas que mais tem crescido em nosso meio é o liberalismo. É extremamente conveniente que pessoas individualistas e que adoram a solidão (adoram mesmo, quase como uma deusa, embora nem sempre saibam disso), se apaixonem por uma ideologia que protege seu individualismo. Black Mirror diagnosticou isso perfeitamente, pois mesmo os personagens que demonstram algum tipo de empatia só o fazem diante de algo que gere alguma forma de prazer a eles, ou seja, o bom e velho hedonismo.

O Apóstolo São Paulo mostrou que nosso conhecimento é parcial e, por isso, não conseguimos esgotar o conhecimento de nada. Black Mirror, tomando as vezes do profeta, mostrou que nossa visão está completamente enegrecida, curiosamente, assim como a cegueira branca de o Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago. Foi preciso que alguém de fora apontasse os problemas de dentro de casa.

Ainda que São Paulo estivesse certo sobre não conhecermos o todo, existem certas cosias que conhecemos muito bem, mas ainda assim os profetas precisam nos lembrar disso periodicamente. Parece que o problema é muito maior do que imaginamos…

Oro para que o próximo profeta venha de dentro de casa. Assim a vergonha e a culpa serão menores!

• Maurício Avoletta Junior, 22 anos. É membro da Igreja Presbiteriana do Tucuruvi (SP). Formado em Teologia pela Mackenzie, estudante de filosofia e literatura (por conta própria); apaixonado por livros, cinema e música; escravo de Cristo, um pessimista em potencial e um futuro “seja o que Deus quiser”.

  1. Mauricio, legal seu texto. “Tenho, porém, contra ti…” (rs) que, segundo narrativas bíblicas e do próprio Cristo, profetas que ousaram “encarnar black mirrors” dentro da própria casa, ou não foram ouvidos ou foram mortos, a exemplo do Homem que veio de Nazaré (vem alguma coisa boa de periferias?). Hoje não temos a “delícia” de queimar “hereges” nas fogueiras santas mas fulminá-los dos Whatsapps “familiares” de pensamento único. Há uma paráfrase de Dallas Willard (no livro de James Sire “Hábitos da Mente…”) sobre um jovem, recém saído de uma faculdade, dizendo-se o Cristo, o Filho de Deus. O autor transfere a primeira vinda de Cristo para os nossos dias. O jovem é de uma família batista classe média. Pode conversar sobre Teoria das Cordas ou das últimas inovações na Física, pois é o princípio e o fim de todas as coisas. Sem dificuldades com outros assuntos científicos ou sobre sexualidade. Não só um Profeta, um Santo, o Salvador do mundo, mas, segundo acentuou Dillard, o Homem mais inteligente que o mundo já viu (difícil reconhecê-lo como tal, né não?) Porém, converge toda sua missão, que recebeu do Pai, para o “ananke” (necessidade) suprema que é a salvação do homem. É de fato, o Cristo. Superado os preconceitos e as picuínhas denominacionais, acreditaríamos nele se ele viesse com aquele papo “de amar o próximo”, “caminhar a milha a mais…”, dizendo-se a Verdade, o Caminho e a própria Vida” com tanta espiritualidade nas prateleiras e tendo um Deus “já dominado” em nossas sistematizações teológicas? Em Davos diria para uma plateia besuntada de neoliberalismo (um sistema dificilmente questionado em nossas igrejas) que “a vida de um homem não consiste na abundância dos bens que possui”. Alguém duvidaria das próximas cenas desse “Black Mirror” depois de dominado pelos seguranças? Para jovens como você, um futuro prenhe da esperança de quem prometeu estar ao nosso lado até a consumação dos tempos. [Para Francis Schaeffer, apresentar esse “tesouro em vasos de barro” é um privilégio(!) que não teremos após “deixarmos esse tabernáculo”]

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