Por Levi Agreste

Acordou cedo para admirar os raios de luz que pintavam as árvores. Gostava da sensação revigorante de dormir e experimentar um novo segmento do Tempo, apreciar os sábios ciclos de tudo aquilo que fizera. Suas mãos transpassadas enxugaram as rugas cansadas, que contrastavam com o leve sorriso juvenil. Preparou o café e limpou o pouco de pó que deixara cair sobre o balcão. Enquanto as gotas negras pingavam lentamente, degustava de antemão seu sabor amargo. Escolheu sua caneca predileta e levou-a cheia à frente do computador. Esperou a máquina carregar, abriu o navegador e foi procurar as marcas de seus discípulos no mundo.

Entrou numa das redes da época e começou a explorar sua timeline. Entre alguns “bom-dia-Deus-abençoe” e outros versículos isolados se deparou com um post recheado de comentários. Um de seus queridos questionava a visão bíblica de certos “batizadores de crianças”, enquanto outro retrucava “na paz de Deus” com textos sobre alianças e batismos de famílias. A discussão era acompanhada por muitos outros dos seus, que ora apaziguavam ora incendiavam os ânimos. A polêmica rendeu linhas quase infinitas de comentários individuais – e nenhum consenso.

Seu coração estava perturbado com a caótica compilação de pensamentos e resolveu procurar algo que lhe alegrasse – alguma palavra sincera, uma experiência reveladora – mas seus olhos logo se fixaram em outra vigorosa ágora virtual: tudo começou quando um amilenarista resolveu desconstruir na presença de outros bilhões de internautas um post “teologicamente equivocado” de um dispensacionalista. Outros dos seus assumiram a dor do criticado a se abriu uma discussão sobre a literalidade das Escrituras, passando pelas interpretações de criação e fim de mundo, os personagens dos livros de Apocalipse e Daniel, com diversas citações de variados comentaristas. Alguns comentários raivosos despontavam, gerando curtidas e múltiplas respostas ainda mais fervorosas.

Entristecido com a visceralidade de certas palavras agora eternamente gravadas nos transcendentais servidores da internet, ainda teve de presenciar uma batalha de visões e nomenclaturas eclesiológicas, em que certo líder respeitado disseminava frases sarcásticas denegrindo a visão de outro colega pastor, que por sua vez atacava a integridade e inteligência de seu adversário, prontamente defendido por suas ovelhas, que agora eram combatidas pelas ovelhas do outro.

Em meio à turbulência incontrolável de comentários, resolveu intervir. Sob o perfil Nazareno, repetiu uma frase que disse há mais de dois mil anos para outros de seus discípulos: “Com isso todos saberão que vocês são meus discípulos, se vocês se amarem uns aos outros”. Sua entrada foi prontamente curtida por uma porção de usuários, apoiada com palavras de outros perfis.

Quando achou que a situação estava prestes a ser remediada, outro respondeu com um “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”, justificando a trelência, a que outro ainda acrescentou que sua “visão teológica estava incompleta”, não sendo possível isolar um texto bíblico de seu contexto. Mais um juntou-se ao coro, armado com as palavras do apóstolo Paulo condenando os hereges, palavra atribuída por alguns ao Nazareno.

Uma enxurrada de dizeres complementavam as críticas e davam início a novas troças. E o barulho ensurdecedor da internet pouco a pouco silenciava as simples palavras há pouco tempo postadas pelo frustrado internauta, que a esse ponto já se esquecera do café ao lado do monitor.

Respirou fundo. Desligou a máquina.

“Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que estão fazendo”.

 

  • Levi Agreste, 25 anos, graduado em Letras pela Unicamp, leciona em três escolas da região metropolitana de Campinas, faz parte da coordenação da ONG Soprar e escreve no blog umanovaviagem.

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