Por Rafaela Senfft

Igreja é um lugar de pessoas diferentes, vindas de diferentes contextos e histórias.  Obviamente, quando encontramos a Cristo e começamos a caminhar com Ele como Igreja, ainda levamos em nossa bagagem existencial tudo o que foi construído em nossa persona, construção essa que se dá desde a mais tenra idade, de acordo com nosso histórico familiar, religioso, cultural e etc. Nessa vivência estão inscritos nossos traumas e medos, como vemos os outros e nós mesmos, e isso certamente refletirá na maneira como vemos Deus e nos relacionamos com Ele.

A caminhada desse ponto onde construímos nossa percepção sobre Deus até aquele em que O conhecemos como é de verdade pode levar anos a fio. Ele faz esse trabalho em cada um individualmente. Os elementos tóxicos que carregamos na nossa formação embaçam a lente de como O vemos, e na medida em que caminhamos com Ele essa poeira vai se dissipando através de curas, provações e testes, até que O vejamos como Ele é. Mas cada pessoa terá seu tempo.

Devemos sempre ter em mente que somos diferentes em nossas histórias e que nossos processos também serão diversos. É sensacional como Deus considera esse tempo e faz as mudanças em cada um de uma maneira singular. Jó era um homem que já conhecia as leis de Deus e seus mandamentos, era um homem que cumpria a lei, mas ainda não tinha visto a Deus. Depois de uma longa provação e muitos anos de “crente” ele O viu, verdadeiramente como Ele é. “Meus ouvidos já tinham ouvido a teu respeito, mas agora os meus olhos te viram” (Jó 42:5).

Isaías, depois de espalhar tantas palavras proféticas à nação, chegou ao momento em que viu o próprio Deus: “No ano em que morreu o rei Uzias, eu vi também ao Senhor assentado sobre um alto e sublime trono; e a cauda do seu manto enchia o templo” (Isaias 6:1).

Acho sensacional como Deus trabalha em cada um, em tempos e disposições distintos. Estamos em níveis diferentes de construção e assim Deus vai nos mudando, como um vaso de cerâmica nas mãos do oleiro, o qual ele persiste pacientemente em modelar. Ainda que o vaso se quebre ou entorte várias vezes, ainda que a argila resseque no meio do processo, nada disso importa. O tempo e o modo da obra que Deus começou a fazer em cada um dos seus são de uma peculiaridade impressionante. E é para isso que quero chamar atenção.

Muitas vezes somos feridos e ferimos outros em nosso ambiente de convívio cristão. Talvez pela incapacidade de tolerar essa maneira tão singular do desenrolar da obra de Deus na vida das pessoas.  Quem veio de uma vida bagunçada, como eu, sabe como Deus é extremamente cuidadoso ao fazer as coisas. Como Ele lida com uma identidade fundada sobre valores falsos e ilusões, desprovida de senso moral; como Ele lida com uma alma tão impregnada de sujeira, como Ele é cuidadoso pra tocar nossas feridas, como Ele é preciso em mostrar de maneira que conseguimos enxergar, como Ele mesmo utiliza dos nossos próprios recursos de visão para isso. Para Ele não se importa com quanto tempo levará, Ele ordena nossa bagunça de maneira respeitosa e terna!

Quando comecei a frequentar a igreja, sempre tinha a impressão de que a maioria das pessoas parecia respirar ares angelicais, pois muitas vieram de famílias bem estruturadas e muito abençoadas, bem diferente do que acontecera comigo. Eu me sentia super constrangida e não conseguia me abrir, porque minha sujeira poderia escandalizar essas pessoas. Ficava com muita raiva de mim mesma quando elas davam exemplos de seus pecados e estes eram como tomar sorvete em excesso.

Meu Deus! Como eu poderia estar ali? Mas isso era um problema de autoestima. Eu não entendia que existiam vários níveis de cura e caminhada com Deus, pensava que imediatamente a gente deixaria de praticar até os pecados que consideramos mais sujos!  Eu também não entendia sobre perdão e graça. Estava lá caminhando com Jesus, sendo igreja, mas ainda não conhecia a Deus como conheço hoje. Então descobri que isso é uma questão de tempo, perseverança, graça, misericórdia e muito, mas muito amor. Cada pessoa que insistir em andar com Deus vai conhecê-lo como Ele é, e enquanto isso Ele terá muita paciência conosco.

Deus tem paciência, nós não! Sempre cobraremos do irmão uma posição para a qual ele ainda não está preparado. Quantas vezes já fizeram isso comigo e quantas vezes já fiz o mesmo com as outras pessoas. A gente costuma a “se achar” quando alcançamos uma cura ou somos libertos em alguma área a ponto de achar que deve ser da mesma forma com todos. Muitas vezes perdemos a paciência com os irmãos, nos tornamos intolerantes, gastamos energia em discussões desnecessárias porque galgamos um degrau no prédio de Deus.  Por isso ferimos e nos sentimos muito feridos dentro da igreja, porque não temos a sensibilidade, tolerância e a misericórdia que deveríamos ter com nós mesmos e com as outras pessoas. Quem nunca foi ferido na igreja? Quem nunca feriu alguém?

Já me deixei levar por aquele discurso clichê de não querer frequentar a igreja por causa das pessoas, mas quem penso que sou?  Todos entramos no ambiente comunitário com nossos monstros particulares, mesmo aqueles que menos aparentam ser pecadores.  Mas estou aprendendo sobre essa singularidade através do que Deus está fazendo na minha vida, um processo tão pessoal que só eu posso receber esse tratamento que é individual. E não vai adiantar eu querer dar meu remédio para outra pessoa beber, porque ele foi desenvolvido especialmente para mim, tem meu nome escrito no rótulo, com dosagem e horários específicos para eu tomar. O que posso fazer pelo outro é testemunhar que há um Deus que se preocupa com sua individualidade e com sua história particular, e que vai lidar com ele de uma maneira especial, que é só sua e Dele.

Tenho sido encorajada a ter mais respeito pelas pessoas (o que é impossível se Deus não voltar minha mente para Sua palavra e eu orar infinitamente por isso), encorajada pelo Espírito Santo a atentar para essa singularidade, ser sensível e a ter compaixão, pois só Jesus poderia juntar pessoas tão diferentes num só lugar.

Tendemos a gostar de conviver com quem nos identificamos, com quem tem uma história e gostos similares aos nossos, a mesma ideologia e estilo. É muito confortável!  Mas Jesus não, Ele convivia com as mais distintas pessoas e as juntava num único propósito. Precisamos imitá-Lo, amando e tolerando quem é diferente, sabendo que essa pessoa é igualmente amada por Deus e usada de forma peculiar com seus dons e talentos.

Quem nunca se sentiu inferior por causa de críticas de pessoas que se achavam melhores, mais inteligentes e mais santas? Da mesma forma, nossas feridas também podem ferir o outro quando respondemos a essas ações de maneira igualmente espinhosa. Assim se constrói um ciclo doente dentro da igreja. Alguém terá que dar a outra face para que isso não prossiga, e confesso estar pedindo a Deus essa disposição: que seja eu! Será desconfortável, vai doer, mas me candidato para que Deus o faça em mim se Ele quiser.

Deus não nos trata como tratamos a nós mesmo e as outras pessoas, não nos cobra com prontidão, nem exige com dedo em riste. Essa é uma visão distorcida de Deus que vêm de dentro de pessoas igualmente distorcidas. Que leve a vida inteira, mas que com as obras de Deus em nós, assim como foi com Jó, Isaías e Moisés, que também vejamos a Deus. Ele começou uma obra em cada um e vai completá-la até o dia em que Ele voltar! Se mais da metade da sua vida foi desperdiçada em drogas, álcool e pornografia, não importa. Se foi fundada sobre a religiosidade, também não importa.  Melhor um dia com Ele do que os milhares que você passou longe.

Quando bate alguma dúvida sobre o cuidado de Deus, me lembro das coisas que eu fazia antes, de onde e com quem eu andava, e vejo que Ele estava lá. Caso contrário eu já estaria morta ou seria mais uma dessas faces estampadas na sua conta de luz como uma pessoa desaparecida. E o mais interessante é que eu penso que essa categoria de pessoas que tiveram uma vida muito bagunçada ganha uma revelação especial da graça, porque elas nunca poderiam se imaginar buscando a Deus. Aí o contraste fica muito mais acentuado, e a glória de Deus fica muito mais visível. Porque só pode ter sido Deus, não há a mínima possibilidade de pensar em mérito próprio.

Ainda que as fraquezas de outrora nos assombrem, porque não se passa de uma vida bagunçada para a vida de santidade em um passe de mágica, Deus está presente! Se for ferido, lembre-se que quem o feriu também está ferido. Ninguém está pronto ainda. Somos uma noiva estropiada que encontrou nosso Salvador, que nos ama e vai lidar com cada um de uma maneira especialmente individual.

Que possamos buscar de Deus a disposição para dar a outra face e quebrar o ciclo de intolerância dentro do corpo, que possamos ver a imagem de Deus na face do nosso irmão, porque vemos aparência, mas Deus vê o coração. Não posso negar meus problemas nesta área do relacionamento em comunidade, por isso faço dessas palavras a minha oração.

  • Rafaela Senfft é artista plástica formada pela Escola Guignard/UEMG, onde é professora de História da Arte Ocidental no curso de extensão. É membro de CIVA (Christian in Visual Arts) e congrega na Igreja Esperança, em BH.

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