Por Rafaela Senfft

Sonhei que estava colando paetês em bananas. Soa estranho. Como a maioria dos sonhos, é engraçado e ilógico; mas permaneci pensando sobre este e não é tão ilógico assim. A arte surrealista nos ensina, pela justaposição de objetos aparentemente sem sentido, a entender coisas importantes na vida; só que a gente despreza o que é engraçado e aparentemente sem sentido porque não corresponde à nossa lógica pragmática de organização diária.

O bom de ser artista, e os poetas também podem sentir a mesma gratidão, é que a gente dá importância a essas trivialidades, louquinhas de rir. A gente não dá de ombros, pois qualquer coisa é uma oportunidade pra encher o coração. E enche.

Não vou falar sobre o que compreendi sobre a metáfora da banana coberta de paetês; mas isso me leva a falar das motivações dos artistas e poetas a fazer o que fazem, principalmente na arte que não é óbvia. Que, como a um sonho esquisito, a gente dá de ombros porque não gostamos de perder tempo com essas coisas “insignificantes”, e assim vai.

E a gente vai perdendo a capacidade de ser sensível e fica parecido com o dragão Smaug, cheio de escamas duras, que não é atingido por nada, carregando toneladas de rigidez. Mas até ele tinha um pedacinho na barriga, bem pequenino, onde não havia escama, e quando a flecha o atingisse naquele lugar vulnerável, ele morreria.

Talvez seja isso, morrer para viver, e isso requer vulnerabilidade. O dragão não morre para viver, mas aquele era o ponto sensível dele.  Mas a gente deve morrer (quem quiser, pois, salvar a sua vida perdê-la-á – Marcos 8:35), deve deixar ser atingido naquele lugar que a gente mesmo faz questão de manter oculto. 

Paulo ficou cego quando viu Jesus, mas quando voltou a enxergar e disse que escamas caíram dos seus olhos. Interessante essa metáfora; as escamas caem e a sensibilidade aparece, acontece uma mudança de mente, do olhar. A realidade muda e os olhos são curados, abertos para aquilo que ultrapassa os parâmetros desse mundo medíocre, desse sistema achatado, que o todo tempo propõe exigências mortas para o sucesso.

A arte e a poesia podem ser a passagem de ida à transcendência, mas não devem haver escamas, pois suas poltronas são de seda.

Gosto muito da obra ilustrada aqui, de Domingos Mazilli, um coração que leva algumas pérolas costuradas. Essa obra me vem à cabeça todas as vezes quando ganho algum conhecimento de Deus. Quando estou orando pela manhã e tenho uma revelação na palavra, me sinto assim, como se uma pérola fosse acrescentada ao meu coração, e assim Deus vai enchendo, uma pedra, duas, três… a cada vez que leio um texto e que vem um novo aprendizado.

Estimo muito esta obra e a inspiração que esse artista teve, seja lá o que o levou a criar isto, seja lá o que ela significa, mas veio aos meus afetos trazendo um significado puro, que ilustra minha relação com Deus a cada iluminação do Espirito Santo. Poderia até usá-la para ilustrar Provérbios 3:1: “Filho meu, não te esqueças da minha lei, e o teu coração guarde os meus mandamentos“.

Talvez eu pudesse olhar para tal obra e sentir repulsa por só conseguir enxergar carne crua exposta, e ainda desprezá-la porque não é uma pintura realista e não corresponde ao meu entendimento do que é ou deixa de ser arte, porque ela desafia minha lógica e afetos.

Estou cada vez mais convicta de que as escamas são as roupas das quais devemos nos despir. Elas configuram o espírito da religiosidade, de se achar melhor e conhecedor de todas as formas, do desamor, do preconceito, dos julgamentos…

  • Rafaela Senfft é artista plástica formada pela Escola Guignard/UEMG, onde é professora de História da Arte Ocidental no curso de extensão. É membro de CIVA (Christian in Visual Arts) e congrega na Igreja Esperança, em BH.

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