friends-central-perk-1Há 12 anos (sim, 12 e você está velho demais) foi ao ar o último episódio da série Friends. Confesso que, em pleno 2016, a série ainda é minha companhia de almoços solitários pela semana. Mas, apesar de o meu irmão constantemente me lembrar de que há milhares de séries novas e interessantes para assistir (obrigada Netflix!), e questionar quando vou superar os anos 90 (jamais), tenho visto que o problema aqui não é só meu.

Não sei contar quantas vezes vivenciei situações com amigos, e de repente um deles citou um episódio de Friends em que algo muito semelhante aconteceu. Sim, eles foram geniais ao retratar cada situaçãozinha banal da vida de um jeito que você se identifica e se dá conta do quanto tudo isso que levamos a sério demais é, na verdade, muito cômico.

Mas isso não é algo que pretendo explorar aqui. Quero chamar a atenção para o fato de que esses meus amigos, assim como eu, assistiram e reassistiram tanto cada episódio, que chegam a se lembrar dos detalhes. Por que será? Vamos falar sobre amizade, nessas cidades cinzas em que vivemos, nesse mundo moderno, materialista e “facebookoso” demais para o meu gosto.

Em seu livro Os Quatro Amores, C.S. Lewis escreve um capítulo sobre a amizade, apresentando o retrato mais genial que já vi sobre esse tipo de amor. (Para quem não leu, atenção: vou dar spoilers, mas faça-se o favor de ler esse livro na sua vida!)

Para começar, Lewis aponta que o mundo moderno ignora a amizade: até admitimos que além de esposa/marido e família, precisamos também de amigos. Mas o próprio tom de uma “admissão” aponta a marginalidade desse amor, que não ocupa o lugar de “prato principal no banquete da vida”.

O autor levanta a assustadora tese de que poucos dão valor à amizade porque poucos realmente a experimentam. Por ser o “menos natural” dos amores, isto é, o menos instintivo e necessário (num mundo onde os relacionamentos são tão utilitaristas), podemos perfeitamente viver e procriar sem jamais ter construído uma amizade.

Essa parece uma afirmação um tanto pessimista, mas o argumento de Lewis é o de que muitos chamam de “amigos” aqueles que são apenas seus “companheiros”. Para ele, o nascimento de uma amizade pode ser simbolizado na frase “O que? Você também?! Pensei que eu fosse o único!”. Enquanto os amantes olham-se frente a frente, absorvidos mutuamente, na amizade sentamos lado a lado, absorvidos em um interesse comum.

É muito fácil fazer amizades – e grupos de amizades – enquanto se é criança ou adolescente. Mas, de repente, nos vemos fora da escola, da universidade, dos lugares onde podemos conhecer com profundidade pessoas novas, e percebemos que os amigos do passado ou estão geograficamente distantes, ou imersos em seus trabalhos e famílias, ou já não têm mais tanto em comum conosco. Passamos, assim, a considerar amigos aqueles com quem convivemos (seja no trabalho, na igreja, nos rolês randômicos da vida), mesmo quando esses encontros nunca ultrapassam a barreira de uma socialização superficial.

Penso que aí está a chave do sucesso de Friends: a série retrata a amizade verdadeira na vida adulta… numa cidade onde o encontro é quase um milagre. Talvez você tenha um amigo verdadeiro, mas um grupo de amizade assim, é coisa rara.

friends

Lewis afirma a diferença entre um grupo de amigos e uma coletividade: apenas entre amigos os homens se relacionam em seu nível mais alto de individualidade (note a diferença: individualidade e não individualismo). Cada um revelando um aspecto único da imagem de Deus. É sua personalidade ali, se expressando e se desenvolvendo em uma troca real com o outro. Você pode ser verdadeiramente o que é, ninguém está preocupado com seu estado civil, ou com que profissão você tem.

A amizade de um grupo “isola os homens do conjunto como a própria solidão poderia fazê-lo”. Tudo isso é muito explorado em Friends: cada personagem tem peculiaridades em sua personalidade, que no todo são muito mais do que a soma das partes. Existe algo sobre a Phoebe que somente o Joey pode trazer à tona. Se a Rachel não está na sala, a reação de Ross a uma brincadeira do Chandler pode ser totalmente diferente. E mais: a relação entre Monica e Chandler ganha uma característica única na presença do Joey. E por aí vai. O que quero dizer com isso é que essa troca enriquece os personagens de um jeito que não temos (e nem eles mesmos teriam) consciência.

As cenas do Central Perk, café onde o grupo costuma se encontrar, são representações certeiras do que Lewis chama “reuniões de ouro”:

“Quando quatro ou cinco de nós, depois de um dia cansativo, entramos na estalagem; quando pomos os chinelos, estendemos os pés para o fogo, com uma bebida ao lado; enquanto o mundo inteiro, e algo além do mundo, abre-se para as nossas mentes quando conversamos; e ninguém tem nada a reivindicar nem qualquer responsabilidade em relação a quem quer que seja, mas todos são igualmente homens livres e iguais como se tivéssemos nos encontrado pela primeira vez há uma hora, enquanto ao mesmo tempo uma Afeição temperada pelos anos nos envolve. A vida — a vida natural — não possui dom melhor a ofertar.”

Concordo com ele. No fim das contas, creio que essa partilha é o que, na verdade, muitos iludidos procuram, quando buscam incessantemente pelo amor romântico. Os filmes, as canções e a sociedade nos dizem que estaremos sós até encontrarmos um(a) companheiro(a) para a vida. É melhor incentivar o amor romântico, porque a verdadeira amizade, além de ser totalmente desnecessária para a reprodução da sociedade, pode carregar consigo a perigosa semente de uma revolução:

“Os homens que possuem amigos fiéis são menos fáceis de manejar ou alcançar; mais difíceis de corrigir por parte das boas autoridades e de corromper por parte das más. Assim sendo, se nossos senhores, pela força ou propaganda a respeito da Proximidade ou por tornarem impossível, de maneira sutil, a privacidade ou o lazer não planejado, vierem a ter êxito em produzir um mundo em que todos são Companheiros e ninguém é Amigo, terão removido alguns perigos, e terão também tirado de nós aquilo que é quase nossa mais forte proteção contra a servidão absoluta.”

Eros não é tudo na vida. Claro, encontrar um parceiro com quem podemos começar uma família é algo maravilhoso. Que um casal apaixonado se isole por um período de tempo e curta a descoberta do outro é algo necessário e bom, mas o isolamento precisa ser limitado. O que seria do grupo se Chandler e Monica se considerassem suficientes um para o outro? O que seria desse casal?

“Nada enriquece mais o amor erótico do que a descoberta de que o ente amado pode entrar numa amizade profunda, verdadeira e espontânea com os amigos que já possuíamos: sentir que nós dois não estamos apenas unidos pelo amor erótico, mas que nós três, ou quatro, ou cinco, somos viajantes em busca da mesma coisa, tendo todos a mesma visão.”

Muitos de meus amigos estão  se casando, e em meio à alegria que partilho com eles, confesso que há uma pontinha egoísta de receio de que a nova família os engula e deixemos de ser “viajantes” juntos. Sei que muito da solidão da vida adulta vem disso mesmo.

Por fim, vejo que é difícil fazer amizade com pessoas do sexo oposto quando se está solteiro. Percebo com frequência sutis insinuações sexuais nas falas de alguns caras (não que a pessoa levaria para frente o que está insinuando).

Quando disse para um cara – que nem estava interessado em mim –, que essas brincadeiras me incomodavam, porque colocavam nossa relação em um lugar diferente da irmandade que eu gostaria de construir com ele, percebi que ficou sem saber como se relacionar comigo. Achei triste.

Assistir a dinâmica do grupo em Friends é quase um refúgio para nossa solidão diária, mas precisamos não nos contentar em viver as coisas pelas séries e filmes. Precisamos reaprender essa inútil arte de fazer amizades. Talvez precisemos desenvolver mais interesses inúteis.

Alguém, por favor, venha passar horas discutindo O Silmarillion comigo, ou sobre como café é algo pra se beber sem açúcar, alguém aí me diga que não entende como consegue gostar tanto de The Smiths, que acha que a vida é curta demais para pintar as unhas, que as praças públicas deviam estar mais cheias que os shoppings, que os dias frios e com sol são os melhores da vida, que é bolacha e não biscoito, que o Brasil devia praticar a siesta, que seria melhor ter ido ver o filme do Pelé, que cada pessoa é um mistério, que não vai superar os anos 90, e que Friends, definitivamente, é a melhor série que existe para se assistir enquanto almoça sozinho!

Jac Meireles, 25 anos, mora em Campinas, doutoranda em Psicologia Escolar e co-fundadora da ONG Projeto Soprar. Texto originalmente publicado em sobrado518.com.br

  1. Estou de volta à Campinas depois de 6 anos, meus amigos da faculdade já tem famílias e outros foram embora. Quer conversar? Não concordo que nos dias frios sejam os melhores, mas que Friends é a melhor série do mundo isso é indiscutível. Enfim, podemos falar disso num dia desses, ver um filme o qual nos arrependamos e prefeririamos ver o do Pelé. Belo texto. Abraços

  2. Quanta lucidez num texto só! Parabéns!
    E… SIESTA JÁ!
    Quero ler mais… e quando vier a Curitiba vamos tomar um café (o meu precisa de açúcar.. e leite).

  3. Eu também acho a vida curta demais para se pintar as unhas!!! E estou aprendendo o que é se ter amigos. Pela primeira vez na minha vida de adulta. Estou também percebendo que é chave para Cristo poder viver em nós. Que você seja agraciada com muito eros por aí 😉

  4. Sensacional! Eu nunca fui bom pra fazer amigos, até hoje só tive colegas (de escola, de igreja) mas ninguém com quem pudesse sentar e falar sobre filmes, livros, séries e planejar viagens a Nárnia.

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