UltJovem_10_05_16_WhatsApp_reduz
O aplicativo foi suspenso. O murmúrio foi grande. Mas depois um silêncio se fez sobre a virtual terra desolada. E do que nada era, brotou vida

Por Levi Agreste

 

“…Então ele se levantou, comeu e bebeu. Fortalecido com aquela comida, viajou quarenta dias e quarenta noites, até que chegou a Horebe, o monte de Deus. Ali entrou numa caverna e passou a noite. E a palavra do Senhor veio a ele: “O que você está fazendo aqui, Elias?”. Ele respondeu: “Tenho sido muito zeloso pelo Senhor, Deus dos Exércitos. Os israelitas rejeitaram a tua aliança, quebraram os teus altares, e mataram os teus profetas à espada. Sou o único que sobrou, e agora também estão procurando matar-me”. O Senhor lhe disse: “Saia e fique no monte, na presença do Senhor, pois o Senhor vai passar”. Então veio um vento fortíssimo que separou os montes e esmigalhou as rochas diante do Senhor, mas o Senhor não estava no vento. Depois do vento houve um terremoto, mas o Senhor não estava no terremoto. Depois do terremoto houve um fogo, mas o Senhor não estava nele. E depois do fogo houve o murmúrio de uma brisa suave”.
(1 Reis 19:8-12)

 

Há poucas semanas, fomos assaltados por um fato inusitado e intolerável: era suspenso o uso do Whatsapp por até três dias, segundo ordem judicial. Dezenas de milhares – não! –, centenas, milhões de brasileiros desesperados, trocando as últimas notinhas do dia, aguardando o juízo final. O murmúrio foi grande: o que será das relações pessoais? o que será de nós? o que será do impeachment? Ó céus! Mas um silêncio se fez sobre a virtual terra desolada… e do que nada era, brotou vida.

Sérgio, um homem honesto e trabalhador, empossado das mais dignas responsabilidades de um analista de dados, descobriu que apreciava sua própria presença, uma vez que não se via mais atarefado com as intermináveis conversas virtuais. Parou para pensar na vida, lembrou da esposa, Márcia, de morenos cabelos curtos, e de como fazia tempo que não saíam para tomar um sorvete com as crianças. Lembrou que havia ficado de verificar as notas do Pedrinho do último bimestre, já que não estava indo muito bem em Português. Revisitou na memória a imagem do antigo amigo Orestes, com quem conversava horas a fio a respeito de política, economia e futebol – como fazia tempo que não conversavam!

Veio à mente a possibilidade de visitar os pais. Havia lhes prometido uma noite de jogos de cartas com os netos, mas já era tempos… As gargalhadas dos filhos ecoaram por detrás das memórias e já podia ver a mesa repleta de doces caseiros, preparados diariamente por quem não suporta ver uma única pessoa sem comida na boca. Quatro, seis, valete, escopa! E lá ia um feijãozinho marcar o ponto.

Recordou quando nutria um grupo de valentes jogadores amadores de futebol, todo sábado, correndo desnorteados pela rotina insalubre do trabalho. As pernas pesadas esmagando o chão, trançando umas nas outras em busca da bola, que quicava incessantemente. Um corte seco e um corpo entregue deslizava pelo chão, ralando tudo, ralando coxa. Um chute desengonçado que desviava na canela do adversário, girava até a trave, encostava – como que por capricho! – na luva do goleiro e batia no fundo das redes. Eram craques por alguns segundos e todo suor que encharcava o corpo, revigorava a alma.

Pensou naquele livro empoeirado na cabeceira da cama, de como havia se interessado pela narrativa, envolvendo-se com as motivações e limitações do personagem. Percebeu como via muito de si naquele estranho aventureiro, que era capaz de fugir de si mesmo para escapar de seus medos, mas que ainda persistia em sua jornada em razão de seus amores.

Notou que lá fora chovia… e que não chovia há tempos. Sentiu falta de algum verde no escritório e… onde será que foi parar o Roberto? – Está doente, é virose – ah, que pena, está de cama? – está sim, vou dar uma passada lá depois do trabalho. Quer vir? Eu… E o celular despertou.

Os olhos, como que em estado de abstinência, voltaram-se imediatamente ao aparelho, que piscava alegremente, com mensagens na tela do celular. Ele voltou, ele voltou! Enfim, estamos salvos, não haverá apocalipse – hoje não! Os dedos começaram a retumbar freneticamente na pobre tela, compondo palavras, frases, enviar, enviar, enviar… E assim que deixou de reinar o silêncio nas terras virtuais, voltou a reinar a morte na terra dos viventes.

 

• Levi Agreste, 24 anos, graduado em Letras pela Unicamp, leciona em três escolas da região metropolitana de Campinas, faz parte da coordenação da ONG Soprar e escreve no blog umanovaviagem.

 

  1. Esse texto reflete a triste realidade em que estamos inseridos. E é muito triste as consequências que ela nos impõe, a saber, silêncio, distração, solidão, timidez, reclusão, falsidade entre tantos outros comportamentos nocivos à uma boa convivência social.
    E quando digo que NUNCA TIVE CELULAR, as pessoas me perguntam: como você consegue se comunicar? daqui pra frente citarei como resposta a última frase do texto, se o autor autorizar, é claro!

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