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Por Gabriel Brisola

Entrei na última sessão de cinema de uma quinta-feira, perto das onze horas da noite. O calçadão apenas com os moradores de rua, as luzes amareladas dos postes. Era um cinema de rua, desses que não se acha mais. A sala com cheiro de mofo, as poltronas antigas e meio duras, uma meia dúzia de gente perdida pra assistir um filme fora do circuito comercial num projetor sem foco e sem manutenção desde quando eu entrei na faculdade… Foi assim que eu assisti “A grande beleza”.

Na juventude, enquanto seus amigos diziam ser a vagina o que mais gostavam na vida, Jep Gambardella dizia ser “o cheiro das casas dos velhos (…) Eu estava destinado à sensibilidade”. Ao fazer 65 anos, percebe que passou a vida mergulhado em círculos intelectuais, festas, mulheres e aparências, e que havia perdido o senso de beleza e maravilhamento. Sente-se cansado das coisas, vivendo a sombra de seu único livro publico há 40 anos, uma obra-prima da literatura italiana. Não escreveu mais nada depois desse livro, apenas reportagens e entrevistas.

Em narrativa episódica, o filme mostra Jep como aquele que vê, que busca olhar. As coisas se descortinam diante de seus olhos e o mistério do mundo começa a tomar conta dele quando decide entrar em contato consigo mesmo. Observa as freiras e as crianças na rua, chora com um desconhecido que foi marido de seu amor de juventude, anda pelas ruas de Roma sem rumo certo, começa a namorar uma stripper de quase 50 anos, para o espanto e descrença de seus amigos intelectuais, deixa-se levar por uma exposição de fotos…

Aos 65 anos, Jep decide viver e reencontrar-se consigo mesmo: talvez isso lhe dê razões, motivos para voltar a escrever, acordar, olhar para o teto de seu quarto e ver o mar (como ele de fato vê, no filme), reencontrar beleza. Beleza! Que palavra pequena para coisa tão grande: ultrapassa os quesitos estéticos, formais, morais. Beleza que visita os monumentos, beleza que visita os bordéis, os museus, as maldades. Não obedece a regras, não tem morada fixa, não tem onde recostar a cabeça. Beleza que surge com a desgraça, que resiste à dor, à ordem, ao que é por decreto dos homens, beleza marginal, resiliente. Que desgraça o reto e enche de graça o torto. Mistério dos mistérios: encontrar-se com a vida que pulsa nas ruas.

Ao encontrar-se consigo mesmo, com o vazio e com as forças que arrastavam Jep pela vida, ele depara-se não com o abandono, mas com o acolhimento de um mundo que é pulsante de vida e graça. Olhar-se com desprendimento e perdão é olhar o mundo com leveza e amor, é encontrar o que está escondido nos muros de concreto, escondido, mas sempre à vista. “Estamos todos à beira do desespero, tudo que podemos fazer é nos olhar no rosto, nos fazer companhia, contar uma piada às vezes… Ou não?”

É preciso aprender a ver as coisas. Renovar os olhos, a mente, o coração para olhar os lampejos de beleza (novamente, uma palavra pequena) ao redor do entulho que se acumula ao nosso redor e em nós mesmos. Não se trata de alienação, mas de alimentar a vida com arte, de olhar o mundo com os olhos da graça, do perdão e do amor. Nascer, de novo.

O filme acabou, a película roda em falso no projetor. Na sala ainda escura, a luz branca enche a tela. Permaneço sentado na poltrona, minha alma em silêncio e reverência.

“Quero assistir ao sol nascer
Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer
Quero viver”

(Cartola)

 

 Gabriel Brisola tem 24 anos, é formado em jornalismo e fotógrafo.

  1. Antonia Leonora van der Meer

    Estou atrasada na leitura e na resposta, mas tanto o produtor italiano e sua personagem Jep como o Gabriel Brisola tocaram meu coração, que linda forma de redescobrir a beleza da vida…

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