Por Eliceli Bonan

Dedos queimados e calos são cicatrizes comuns deixadas pelo crack nas mãos de quem fuma Foto: Marcello Casal Jr./ABr

– A única diferença entre eu e vocês é que minha roupa está suja – disse Áureo Angélico de Jesus, em pé, debaixo da marquise de um prédio próximo ao Ponto 7, um dos mais movimentados na noite de Porto Velho, RO.

Enquanto discursa sobre a vida, come o cachorro quente que lhe oferecemos e saboreia dydyo, um refrigerante da região, mais vendido que coca-cola. Tira do bolso da bermuda cáqui a carteira de trabalho que há muito tempo não usa. É seu único documento. Bate no peito ao contar que nasceu em Rio Branco, no Acre. Sua expressão muda ao lembrar-se de não ter ganhado nenhum presente de aniversário, no dia anterior.

Veio a Porto Velho por causa da mulher. A língua se embaralha ao falar dela e não consegue dizer coisas claras. Trabalha como guardador de carros e dorme em qualquer lugar. Fuma crack todos os dias depois da metade da tarde porque, segundo ele, as outras drogas não fazem nenhum efeito. O cabelo longo, a barba por fazer, um dos dedões do pé sem a ponta. De pé, na calçada, cinquenta centímetros acima do meu olhar, ele é o professor agora. Sinto-me diante de um mestre. Ele sabe do que fala. Não quer ir para uma casa de recuperação, porque não precisa ser recuperado. E o que precisa?

– Preciso ser transformado. Já estive em casas de recuperação. Fico lá um tempo, me recupero, volto gordinho, limpo e cheirosinho. Mas por dentro continuo a mesma pessoa. Quando chego à rua sou igual antes.

Falamos de Jesus. Ele conhece o assunto. Passou boa parte da vida na igreja e gostaria de estar numa agora.

– As pessoas me oferecem de tudo, bebida, droga, dinheiro, roupa, comida. Mas não me oferecem o que preciso de verdade. Eu preciso de ajuda. Não consigo sair sozinho. Outro dia passou aqui um desembargador e cuidei do carro dele. Lembrava daquele homem. Já tinha batido na porta da casa dele pedindo ajuda. Ganhei um pão mofado. Quando olhei pela janela, o cachorro estava comendo um grande pedaço de carne. Tenho que desabafar. Eu me sinto pior do que aquele cachorro.

É o trabalho de uma igreja local: distribuir abraços e comida para moradores de rua todas as quintas depois das 22 horas. Juntamo-nos a eles. Éramos quase trinta, divididos em pequenos grupos. Égon, 19 anos, lidera meu grupo. Fala com eles como se os conhecesse a vida toda e só depois pergunta seus nomes. Sabe quem são, não importa seus nomes. Chama-os capitães, chefes, comandantes. Homens sem identidade ganham títulos, são afirmados e abraçados por Égon. Áureo agora é, nas palavras e atitudes do rapaz, um representante do próprio Deus, um anjo, um profeta.

Sim, é impossível negar. Estou diante de um profeta, um profeta que não ganhou presente de aniversário.

– Tenho um presente para você!, apressa-se Égon. Vou orar. Posso?

– Sim, pode. É muito bonito o que vocês estão fazendo por mim, trazendo esse dydyo e parando para conversar. Sim, sim, ore, preciso de muita intercessão e a oração tem muito poder.

Enquanto oramos, chora muito. Está emocionado por poder comemorar duas vezes o aniversário.

– Sei que vocês não podem fazer muito por mim, mas posso pedir apenas uma coisa? -, diz, entre as lágrimas.

– Fala profeta!, é a resposta rápida de Egon.

– Se vocês voltarem aqui na próxima semana, tragam uma camisa limpa pra mim.

– Pode ser preta? Se pode ser, vamos ali do lado que deixo a minha com você e você me dá a sua. O que acha?, propõe nosso jovem líder.

– Não meu amigo, é um ato de muito amor de sua parte, mas não aceito. Volta aqui na próxima semana e me traz uma.

– E onde te encontro na próxima quinta?

– Vou estar aqui, no mesmo lugar, tenho certeza. Eu não vou sair daqui.

Queria abraçá-lo e dizer alguma coisa. Não fiz nada, não disse nada. Virei as costas tentando esconder as lágrimas e saí dali. Lembrei o que tinha entendido momentos antes: “Hoje você vai enxergar”. Enxergar dói.

Na semana seguinte, Áureo ganhou sua nova camisa.

_________

Eliceli Bonan24 anos, é jornalista, missionária de JOCUM na base em Curitiba (PR). Gosta de ler, ver filmes, tocar instrumentos musicais…

 

  1. “- A única diferença entre eu e vocês é que minha roupa está suja – disse Áureo Angélico de Jesus, em pé, debaixo da marquise de um prédio próximo ao Ponto 7, um dos mais movimentados na noite de Porto Velho, RO. ”

    Gozado! E ao final pediu uma camisa! E ainda fez uma exigência! Que fosse a semana que vem, naquela hora, não!

    Vou chamá-lo de Ricardo, o nome é fictício. Meteu-se em drogas anos a fio. Ao final, endireitou-se, ou melhor, endireitou-se quase.

    Largou as drogas, mas era difícil viver numa sociedade que exigia valores que não tinha, chutou todos o que adquira e ainda por cima se julgava no direito de apontar o dedo para quem tinha.

    Mas certa ocasião dissera uma verdade estonteante:

    “uma das coisas que eu mais odiava quando estava metido em drogas, era a atitude de ‘coitadinho’ que as pessoas, evangélicas ou espíritas, assistentes sociais ou altruistas, tinham de mim! Era irritante! destrutiva! Era como se eu fosse zero e eles dez! Não tinha como sair daquilo… Era outra dependência: uma química (meu corpo era preso), outra a deles sobre mim: o discurso! Na verdade eu abandonei as drogas por mim mesmo!”.

    • Olá Eduardo!
      Acredito que é a forma como enxergamos pessoas como Áureo que faz com que sejamos, muitas vezes, tão ineficientes para ajudá-las.
      Você já notou como é fácil olharmos uns para os outros e considerarmos as pessoas ou muito acima de nós ou muito abaixo?
      Para mim, é um desafio muito grande ver o outro exatamente como Deus o vê: um ser criado à Sua imagem e semelhança, portanto, alguém assombrosamente maravilhoso (Sl 139.14), mas, ao mesmo tempo, alguém tão pequeno e miserável que precisa constantemente ser lembrado do amor de Deus, o único capaz de resgatá-lo de uma existência vazia, sem significado, de completa insatisfação.
      Áureo, mais do que qualquer pessoa que já conheci, trouxe-me a esta consciência que tentei retratar no texto, a de que a única diferença entre eu e ele, ou outras pessoas com menos privilégios que tive, é que sua roupa (refiro-me literalmente à roupa) está suja.
      Estamos todos numa luta contra a carne que só vai terminar quando nos livrarmos daquilo que Paulo chama de corpo corruptível e de morte.

      • Caríssima Eliceli,

        Muitos há que têm seus “Áureos” na família. Por vezes os metidos em droga são aqueles que parecem ser objetos de afeto os mais entranhados. Parece-me que realmente a droga (bebida inclusive) é tão devastadora que uma quase ‘devoção’ particular a essas pessoas metidas até à medula na dependência tende a tornarmo-nos mais displicentes ou condescendentes com eles. Estou falando de valores.

        Por anos Ricardo, a figura fictícia foi um desses. Ele mesmo reconheceu e rejeitou essa condescendência (não desejo fazer nenhum paralelismo com o seu Áureo aí). Ricardo não precisa descobrir que tinha valor pensando em Deus. Desde quando uma pessoa que não crê em Deus não tem dignidade? Ou, para ser mais sutil como ouço com frequência no arraial evangélico, especialmente: ele não tem, Deus é que dá. Discordo radicalmente! Aliás, 3/4 da população do mundo não aceita o Deus do Cristianismo!

        Mas eu faço parte de um grupo (refiro-me ao modo de pensar) em que as pessoas para mim devem sim, encaixar em um certo grau de valoração que eu chamo de ‘identidade própria’ independente de Deus.

        Dou um exemplo fictício: chamemos Verônica aquela moça de 21 anos grávida de gêmeos que foi enganada por um maluco que a chantageou com o tradicional apelo do amor, da paixão, etc.

        Sua vida desceu, foi lá para baixo. Seus pais expulsaram-na de casa, o emprego bom cedeu lugar a um outro que mal cobriria suas despesas pessoais, mormente agora com gêmeos.

        Eu enxergo Verônica no mesmo nível de Áureo. Se tiver dó ou piedade de um, terei na mesma medida de outro. Idem para respeito, etc. Mas não tenho nem de um e nem de outro, porque entendo que os dois têm dignidade e essa não foi nem dada nem tirada por Deus.

        Mas há uma valoração em meu ‘olhar’ para com eles, para com a maneira em que os dois se acercam da solução de seus respectivos problemas: se Áureo e Verônica têm (e entendo que têm), ainda que pareçam não ter, um mínimo de dignidade, eu quero ver um e outro em seus próprios méritos. Nos méritos deles.

        O apelo à dignidade que Deus vê no outro tem realmente seu mérito e tomo como premissa. Mas não é isso que me move antes de tudo. Verônica e Áureo têm mérito e não posso admitir (para mim, claro) que eu tenha que pensar em Deus primeiro para me aproximar deles. Eles o têm primeiro. Por isso eu os respeito e queixei-me da ousadia de Áureo com respeito a camisa.

        Eu não estenderia minha mão a ambos porque primeiro Deus os vê. Para mim é o contrário: eles, os dois, se vêm com dignidade próprias ainda que naquele instante parece uma impossibilidade.

        Eu não consigo ver Deus primeiro neles, mas eles vêm e têm dignidade. Agora, esse levantar da sarjeta poderá sim, caminhar na direção de Deus!

        O conceito de pecado que você parece aludir na sua resposta cria aquela oposição à minha maneira de entender que ele (pecado) nada mais é do que dedo apontando para o outro dizendo, “não tem jeito!”. Pecado aqui parece então um reforço ou uma prova da indignidade da pessoa e eu não consigo pensar nessa ordem.

        Tome um exemplo inverso. Cito o caso, posto que vêm-me à mente neste instante. No filme recentemente sobre a vida de Margareth Thatcher, a Dama de Ferro, seu valor, seus méritos (como em Verônica e Áureo, mas ali neles tênue, direi) a tornam uma pessoa na política britânica de enorme peso histórico específico.

        Eu não penso em Deus primeiro e, pela via de Deus, olho para Thatcher (nesse caso com vibrante aplauso pelas virtudes daquela mulher) e a aplaudo. Não, eu a aplaudo e olho para Deus.

        O mesmo para Verônica e Áureo, ainda que naquele momento da vida deles parece absurdamente impossível uma saída. O milagre, direi, não é a restituição da dignidade em ambos, mas que ambos tendo dignidade caminham em direção de Deus. Gratidão, no meu entendimento, não é eu ‘sou zero’, me dão ‘dez’ e eu agradeço. Para meu entendimento e ao contrário: eu sou ‘mais do que zero’ e agora com ele eu agradeço! O que fazem muitos? Ora, fazem de suas próprias dignidades deuses para si mesmos. A gratidão reside, a meu juízo, em destronar justamente isso. Mas não ser ‘um zero’, Deus dá, e eu agradeço.

        Se eu como você tivemos privilégios mais do que Verônica e Áureo (ou menos do que Thatcher!), há mais do que uma única diferença entre eu, Áureo, Verônica e tantos outros, há enorme orgulho, honra, mérito, valor por termos tido mais do que Verônica e Áureo, e se é lamentável que Áureo e Verônica tenham perdido os seus, ou se os têm em pouca medida (contrastando com o muito de Thatcher e eu), eu não me nivelo com eles três: pelo contrário, responderei perante a mim e aos meus com o muito que tenho e com o pouco que Verônica e Áurea tiveram e mesmo assim não souberam, pelo menos até o momento, aproveitar.

        O problema da abordagem em seu artigo e em sua resposta, a meu ver, respeitosamente, é uma modalidade de pensamento evangélico a-crítica que vem desde Agostinho! E tenho que está equivocada. Pelo menos a leitura que muitos fizeram dele. (Estou fugindo do assunto inicial um pouco aqui).

        Para mim não é Deus que me dá a dignidade, é a minha dignidade e o que eu farei com ela (como Thatcher fez!) que refletirá para a grandeza de Deus.

        Por isso que Ricardo ficava irado: mesmo sendo um filho pródigo, ele tinha dignidade. E sabia que tinha. Transferir a Deus como sendo ele a fonte da dignidade é uma operação mental quase impossível (estou sendo delicado aqui!).

        O Áureo que quer sair da sarjeta ou a Verônica que der a volta por cima poderão oferecer seus méritos ao altar de Deus, sim! Mas eu não bato palmas para aqueles que ao saírem da sarjeta agradecem a Deus em público como se eles de si e por si nada de mérito tinham. É um agradecimento, a meu juízo, falso.

        No caso de Thatcher, no meu exemplo, ela nunca esteve na sarjeta e teve méritos, muito embora tenha comido o pão que o diabo amassou. E ofereceu seu melhor, no caso em questão, à Inglaterra.

        Num arroubo de raciocínio, Áureo e Verônica são a Thatcher. Hoje, porém, para Áureo e Verônica, com o sinal trocado.

        • Olá Eduardo,

          Obrigada pela resposta e pelas boas e profundas reflexões e pelos questionamentos que ela gerou em mim 🙂 Apreciei sua atenção ao meu texto e gostaria muito que continuasse acompanhando-os aqui e dando sua opinião.

          Abraços.

  2. Querida Eliceli:
    Sou dependente químico em recuperação. Eu sei que às vezes quem tenta ajudar pessoas como eu e o Áureo simplesmente choram.
    Tuas lágrimas por pessoas como nós tem muito valor.
    Obrigado. Desjo 24 horas de serenidade.
    “Bem aventurados os que tem sede de justiça, por que serão saciados”

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *