“O sal e a luz têm uma coisa em comum: eles se dão e se gastam, e isto é o opção do que acontece com qualquer tipo de religiosidade egocentralizada”.

Não obstante, o tipo de serviço que cada um presta é diferente. Na verdade, seus defeitos são complementares. A função do sal é principalmente negativa: evitar a deterioração. A função da luz é positiva: iluminar as trevas.

Assim, Jesus chama os seus discípulos para exerceram uma influência dupla na comunidade secular: uma influência negativa, de impedir a sua deterioração, e uma influência positiva de produzir a luz nas trevas. Pois impedir a propagação do mal é uma coisa; e promover a propagação da verdade, da beleza e da bondade é outra.

Reunindo as duas metáforas, parece-nos legítimo discernir nelas a relação correta entre evangelização e a ação social, na totalidade da missão de Cristo no mundo, uma relação que deixa as duas coisas, sal e luz, na comunidade secular.

Examinemos, primeiro, a nossa vocação para sermos sal. O apóstolo Paulo pinta um quadro sinistro no final do primeiro capítulo da sua carta aos Romanos, falando do que acontece quando a sociedade abafa (por causa do amor ao mal) a verdade que conhece por natureza. Ela deteriora. Seus valores e padrões declinam rapidamente, até ficar totalmente corrompida. Quando os homens rejeitam o que sabem de Deus, ele os abandona às suas próprias noções distorcidas e paixões perversas, até que a sociedade cheire mal às narinas de Deus e de todas as pessoas honesta.

Os cristãos foram colocados por Deus numa sociedade secular para retardar este processo. Deus pretende que penetremos no mundo. O sal cristão não tem nada de ficar aconchegado em elegantes e pequenas dispensas eclesiásticas; nosso papel é o de sermos “esfregados” na comunidade secular, como o sal é esfregado na carne, para impedir que apodreça. E quando a sociedade apodrece, nós, os cristãos, temos a tendência de levantar as mãos para o céu, piedosamente horrorizados, reprovando o mundo não cristão; mas não deveríamos, antes, reprovar-nos a nós mesmos? Ninguém pode acusar a carne fresca de deteriorar-se. Ela não ode fazer nada. O ponto importante é: onde está o sal?

Jesus ensinava em algum ponto perto do mar da Galileia. Menos de 160 quilômetros ao sul, o Rio Jordão corre para outro mar, que, por ser tão salgado, é chamado de Mar Morto. E, do lado ocidental, vivia naquele tempo uma Comunidade do Mar Morto, cuja biblioteca de pergaminhos causou verdadeira sensação ao ser acidentalmente descoberta há alguns anos atrás. Era uma comunidade monástica de essênios que tinham se afastado do mundo iníquo. Eles se intitulavam “filhos da luz”, mas não tomavam providencia alguma para que a sua luz brilhasse. Assim, no seu gueto, seu sal era tão inútil como os depósitos de sal sobre as praias do mar ali perto. Será que Jesus estava pensando neles? W. D. Davies pensa que Jesus de “uma olhadela de lado” na direção deles. É uma conjectura atraente.

O que significa, na prática, ser o sal da terra? Em primeiro lugar, nós, o povo cristão deveríamos ser mais corajoso, mais francos na condenação do mal. A condenação é negativa, é verdade, mas a ação do sal é negativa. Às vezes, os padrões de uma comunidade afrouxam-se por falta de um explicito protesto cristão. Lutero deu grande importância a isto, enfatizando que a denúncia e a proclamação andam de mãos dadas, quando o evangelho é verdadeiramente pregado: “o sal arde. Embora eles nos critiquem como sendo desagradáveis, sabemos que é assim que tem que ser e que Cristo ordenou que o sal fosse forte e continuasse cáustico… Se você quiser pregar o Evangelho e ajudar as pessoas, terá de ser rude e esfregar sal nas feridas, mostrando o outro lado e denunciando o que não está certo… O verdadeiro sal é a verdadeira exposição das Escrituras, que denuncia todo o mundo e não deixa nada de pé a não ser a simples fé em Cristo. ”

Helmut Thielicke aborda este mesmo tema da necessária qualidade incisiva ou “ardia” do verdadeiro testemunho cristão. Ao olharmos para alguns cristãos, diz ele, “poderíamos pensar que a sua ambição é ser a cumbuca de mel do mundo. Eles adoçam e açucaram a amargura da vida com um conceito demasiadamente complacente de um Deus amoroso. Mas Jesus, evidentemente, não disse: ‘Vocês são o mel do mundo. ’ Ele disse: ‘Vocês são o sal da terra’. O sal arde, e a mensagem não adulterada do juízo e da graça de Deus sempre tem sido uma coisa que machuca”.

E ao lado desta condenação do que é falso e mau, deveríamos com ousadia apoiar o que é verdadeiro, bom descente, em nossa vizinhança, em nosso colégio ou negócio, ou na esfera mais ampla da vida nacional, incluindo os meios de comunicação de massa.

O sal cristão faz efeito através de atos e também de palavras. Já vimos que Deus criou a ambos, o Estado e a família, como estruturas sociais para reprimir o mal e incentivar o bem. E os cristãos têm a responsabilidade de verificar se essas estruturas estão sendo preservadas, e também se estão operando com justiça. Com demasiada frequência, os cristãos evangélicos têm interpretado a sua responsabilidade social em termos de apenas ajudar às vítimas de uma sociedade doente, nada fazendo para mudar as estruturas que provocam os acidentes. Exatamente como os médicos não se preocupam apenas o tratamento dos pacientes, mas também com a medicina preventiva e a saúde pública, nós deveríamos nos preocupar com o que poderíamos chamar de “medicina social preventiva” e padrões mais elevados de higiene moral. Por menor que seja a nossa contribuição, não podemos optar pela dispensa da busca da criação de melhores estruturas sociais, que garantem a justiça na legislação e o cumprimento das leis, a liberdade e a dignidade do indivíduo, os direitos civis para minorias e a abolição da discriminação social e racial. Não devemos nem desprezar essas coisas nem fugir de nossa responsabilidade para com elas. Isso faz parte do propósito de Deus para o seu povo. Sempre que os cristãos são cidadãos conscientes, agem como sal numa comunidade. Como Sir Frederick Catherwood expôs em sua contribuição ao simpósio Is Revolution Change? (A Revolução Muda Alguma Coisa?): “Tentar melhorar a sociedade não é mundanismo, mas amor. Lavar as mãos diante da sociedade não é amor, mas mundanismo”.

Mas os seres humanos decaídos precisam de mais do que barricadas que os impeçam de se tornarem tão maus quanto possível. Precisam de regeneração, vida nova através do Evangelho. Por isso, nossa segunda vocação é para sermos “a luz do mundo”, pois a verdade do Evangelho é a luz, contida, é verdade, em frágeis lâmpadas de barro, mas brilhando através de nossa mortalidade com amais conspícua das claridades. Fomos chamados a propagar o Evangelho e estruturar nosso modo de viver de um jeito que seja digno do Evangelho.

Portanto, nunca deveríamos colocar nossas duas vocações (sal e luz) e nossas responsabilidades cristãs (social e evangelística) em posições antagônicas, como se tivéssemos de escolher entre as duas. Não podemos exagerar uma delas, nem desacreditar uma às expensas da outra. Uma não pode substituir a outra. O mundo precisa de ambas. Ele está em decomposição e precisa de sal; ele é trevas e precisa de luz. Nossa vocação cristã é para sermos ambas. Jesus Cristo o declarou, e isso basta.

Trecho originalmente publicado no livro A Mensagem do Sermão do Monte – contracultura cristã.

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