Hábitos que transformam
Em 1989, o reverendo John Stott veio ao Brasil para falar num dos congressos da VINDE — Visão Nacional de Evangelização. Depois de uma de suas palestras, nos reunimos para conversar com ele. Era um grupo pequeno de jovens pastores, sentados em torno de um dos maiores expositores bíblicos da nossa geração, perto de completar 70 anos. A conversa seguiu animada. Ele nos deu liberdade para perguntas pessoais e, entre outras, não faltaram aquelas sobre o porquê de não se casar.
Porém, de todas, guardei apenas a resposta que ele deu quando lhe perguntaram sobre a razão do seu longo ministério tão frutífero. Ele respondeu: “Leio a Bíblia e oro todos os dias, vou à igreja todos os domingos e nunca falto à celebração da Eucaristia”. A resposta foi surpreendente por sua simplicidade.
Sabemos que ler a Bíblia e orar todos os dias, ir aos cultos e participar da Ceia nunca foram, por si só, sinais confiáveis de espiritualidade, muito menos um caminho seguro para a maturidade. Muitas pessoas fazem isso por puro legalismo. Por outro lado, sabemos também que não fazer nada disso é um caminho seguro e certo para o fracasso espiritual.
O doutor James Houston, criticando o abandono da leitura devocional em nossos dias por uma literatura funcional e pragmática, afirma: “Os hábitos de leitura do chiqueiro não podem satisfazer a um filho e aos porcos ao mesmo tempo”. Ao usar a imagem da Parábola do Filho Pródigo, ele nos chama a atenção para o risco de nos acostumarmos com a vida do chiqueiro. Para Houston, as práticas devocionais nos ajudam a perceber que existe algo maior e mais excelente na vida de comunhão com o Pai.
O reverendo A. W. Tozer (1897-1963) escreveu um artigo afirmando que “Deus fala com o homem que mostra interesse”, e que “Deus nada tem a dizer ao indivíduo frívolo”. Mais do que cultivar o hábito de ler a Bíblia, orar e participar do culto, o que na verdade fazemos quando cultivamos estas práticas devocionais é demonstrar o interesse vivo que temos por Deus e por sua Palavra.
Da mesma forma como a vida necessita do básico (ter o suficiente para comer e vestir, onde descansar), a natureza da vida espiritual repousa sobre o que é essencial (Bíblia, oração, comunhão, adoração e missão). São esses hábitos básicos que nos colocam no lugar onde podemos experimentar a graça de Deus e crescer.
Há hoje muita oferta para a vida e para a espiritualidade. A sedução do supérfluo despreza o essencial. Vivemos o grande perigo de negar o básico, achando que podemos experimentar a graça de Deus e provar sua bondade e amor sem nos aquietar e deixar que sua Palavra molde nosso caráter, que a oração fortaleça nosso espírito e que a comunhão nos sustente em nossa identidade como povo de Deus.
As disciplinas espirituais básicas cultivadas pelo reverendo Stott ao longo de sua vida formaram seu caráter como cristão. Nada pode substituir a prática diária da oração nem a leitura devocional das Escrituras. Nada substitui o valor do culto comunitário nem o mistério da Eucaristia. O cultivo destas disciplinas requer de nós não apenas tempo e perseverança, mas também humildade e coragem para sermos transformados pelo poder de Deus.
Deus não nos chamou para a realização pessoal, mas para a comunhão pessoal e íntima com ele e o próximo. Deus não nos chamou para sermos operários agitados do seu reino, mas para amá-lo e amar ao próximo de todo o coração. Os hábitos devocionais libertam-nos da “normalidade” do chiqueiro e nos transportam para uma existência de comunhão com Deus que enobrece a vida. São estes hábitos que preservam nossos olhos voltados para o alto, para que, aqui na terra, nossa existência ganhe a grandeza dos ideais divinos.
As práticas devocionais fazem parte do processo formativo da alma diante de Deus. Precisamos cultivá-las a fim de permanecermos em sintonia com o reino de Deus, que molda o nosso caráter em Cristo. É a palavra de Deus que devolve a vida aos “ossos secos” da agitação moderna.
Ricardo Barbosa de Sousa é pastor da Igreja presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em Brasília. É autor de “Janelas para a Vida” e “O Caminho do Coração”.
Martins Filho
É muito bom ouvir com o coração as palavras do pastor Ricardo Barbosa e o alerta que ele coloca neste mundo de muito ativismo e pouca comunhão com o Pai.