[Com autorização do companheiro Daniel Dliver, republico sua tradução de um artigo jóia de Jonathan Chaplin, sobre o tema do pluralismo. É esse o tipo de perspectiva subjacente ao que escrevi anteriormente neste blog sobre pluralismo (veja AQUI).]

 

A visão de Kuyper pode ser uma inspiração para os cristãos que hoje enfrentam a dupla ameaça do capitalismo explorador e do estatismo arrogante — ambas as forças profundamente secularizantes.

Por Jonathan Chaplin, 1 de novembro de 2013, Comment Magazine

 

Paridade, não privilégio. Dificilmente um slogan acrobático de campanha eleitoral, mas, em poucas palavras, o objetivo estratégico da visão do “pluralismo” de Abraham Kuyper. Os cristãos não devem buscar uma posição de privilégio político ou legal nas praças públicas de suas nações religiosa e culturalmente diversas, mas uma posição de paridade. O objetivo é desfrutar de direitos iguais ao lado de outras “comunidades confessionais” dentro de uma democracia constitucional marcada pela ampla liberdade de expressão, justa representação, e uma diversidade de vozes. Assim, no auge da luta do século XIX holandês por igualdade de tratamento para as escolas cristãs, Kuyper afirmou que “o nosso objetivo incessante deve ser a exigência de justiça para todos, justiça para cada expressão de vida.”

 

Não mais que isso, mas também não menos. Pois o objetivo não era apenas procedimental ou propor regras justas do jogo democrático. Era profético. James Bratt abre Abraham Kuyper: Modern Calvinist, Christian Democrat com esta sentença: “talvez o maior significado de Kuyper para o nosso próprio mundo religioso e culturalmente fraturado é a maneira que ele propôs que os crentes religiosos levassem todo o peso de suas convicções para a vida pública enquanto respeitam plenamente os direitos dos outros em uma sociedade pluralista, sob um governo constitucional”. A vida de Kuyper, tão vividamente narrado na marcante biografia de Bratt, exemplifica a tentativa de levar “todo o peso de suas convicções” à vida pública, promovendo, simultaneamente, as condições para os outros fazerem o mesmo.

 

Cristãos, e não apenas os da tradição reformada, têm uma grande dívida para com Kuyper por expor o que foi provavelmente a defesa mais convincente do pluralismo no século XIX, em qualquer lugar. Outros cristãos, então e depois, ofereceram defesas paralelas, é claro. O que Kuyper exclusivamente ofereceu, no entanto, foi uma lição rara sobre como realizar três objetivos simultaneamente: a construção de um compromisso com o pluralismo dentro de uma teoria social e política abrangente fundamentada no cristianismo bíblico, o lançamento de um movimento político de sucesso para implementar esse compromisso nos dentes de um poderoso estabelecimento liberal secularizante, e a utilização da plataforma assim criada para estabelecer um terreno comum com seus adversários e de contribuir para o bem comum da sua nação. Apesar de duramente avaliarmos falhas de Kuyper (Bratt mostra que elas foram muitas), aquilo foi um feito incrível.

 

Um dos principais instrumentos de Kuyper era um partido político de inspiração calvinista, organizado em 1879. Este era o “Partido Anti-Revolucionário”, o nome transmitindo oposição ao espírito ateísta da Revolução Francesa, em vez de resistência à reforma política. Kuyper foi um dos primeiros defensores do sufrágio adulto universal (masculino). O partido foi formado em uma ruptura com o movimento conservador aristocrático com o qual os “anti-revolucionários” estiveram aliados. Não foi apenas o primeiro partido democrata-cristão a ser estabelecido na Europa, mas o primeiro partido político de massas, ponto. Assim como o calvinismo original inspirara movimentos democratizantes no século XVII, o neo-calvinismo holandês fez sob a liderança de Kuyper fez no século XIX.

 

Entre as muitas conquistas deste movimento multifacetado, um dos seus mais distintos foi o estabelecimento na sociedade holandesa de arranjos genuinamente pluralistas em educação, saúde, trabalho, comunicação, e em outras áreas. Nesses sistemas, uma diversidade de prestadores de serviços, que representam as principais “comunidades confessionais” (religiosas e seculares) da nação, foram integrados em um sistema público supervisionado, e eventualmente financiado, pelo Estado. Movimentos democratas cristãos de inspiração católica promoveram sistemas paralelos em outros lugares na Europa. Tais arranjos proporcionaram não apenas as liberdades negativas para aderentes individuais a diversas visões de mundo (a versão liberal clássica da liberdade religiosa), mas também as liberdades positivas para associações baseadas em visões de mundo diversas. O objetivo era trabalhar pelo tipo de espaço público nas democracias constitucionais que facilitasse e não que frustrasse a representação do que Charles Taylor tem em nossos tempos chamado de “diversidade profunda”.

 

James Skillen deu o nome de “pluralismo de princípio” para tal espaço. Sua abordagem mostrou-se útil em trazer à tona a pertinência contemporânea do legado pluralista de Kuyper. Skillen identifica dois sentidos, ambos os quais encontram suas origens em Kuyper mesmo que ele não os distinga claramente. O primeiro, “pluralismo estrutural”, abraça as instituições plurais e associações do que hoje chamamos de “sociedade civil”: escolas, universidades, igrejas, sindicatos, organizações não governamentais, empresas, associações de artes, grupos de caridade, e assim por diante. Skillen também inclui famílias e estados neste primeiro sentido. Pluralismo estrutural segue o exemplo de um dos mais conhecidos princípios sociais de Kuyper: a “esfera de soberania”. Este princípio afirma que cada tipo distinto de instituição ou associação (não somente as conhecidas “ordens” tríplices da igreja, casa e governo que remonta à Idade Média), é uma “ordenança de Deus.” Como tal, cada corpo social possui uma natureza e propósito distintos, e uma correspondente autoridade inerente a governar-se livre de intrusão ilícita por parte do Estado ou de qualquer outra entidade. Bratt observa que esta noção não fica sozinha no pensamento de Kuyper, mas funciona em conjunto com uma série de outras, como uma sociologia organicista, uma eclesiologia voluntarista e uma política localista.

 

Como todos os teóricos sociais fazem com todas as suas idéias inovadoras, Kuyper formulou o princípio dentro de um contexto específico que o fez avançar. Ele opôs esfera de soberania tanto contra a “soberania popular” do individualismo liberal, que reduziu a autoridade social e política a vontades individuais agregadas, e contra a “soberania do Estado” do autoritarismo conservador e do socialismo centralizador, que fez de toda a autoridade social uma concessão do Estado. Seus alvos não eram teorias abstratas: o primeiro era o credo das elites dominantes holandeses de sua época, perfeitamente correlacionado com o capitalismo individualista que elas representavam, e o último, a doutrina dos estados centralizadores e dominantes nas vizinhas França e Alemanha. Conforme Kuyper abordou este contexto, o princípio da esfera de soberania não saltou em sua mente diretamente a partir da Escritura ou do Calvinismo, mas refletiu o modelo “orgânico” de sociedade da Escola Histórica Alemã influente em sua época, uma teoria astuta que poderia ser posta para ambos os usos progressista e reacionário. A inovação de Kuyper era o de tornar esse modelo útil para uma teoria social cristã igualitária e pluralista, que poderia direcionar poderosas críticas a ambas as doutrinas.

 

O segundo sentido de Skillen é o “pluralismo confessional”, referindo-se à orientação espiritual condutora de uma instituição ou associação, a estrutura básica de convicções pelo qual é guiada. Exemplos óbvios hoje podem ser um sindicato cristão, um grupo ambiental budista, uma escola judaica, um banco islâmico, uma família católica. De modo menos óbvio, muitas instituições ou associações consideradas confessionalmente “neutras” também revelam um compromisso definitivo, se não declarado, com convicções liberais seculares: uma corporação corre como um “nexo de contratos” (como uma definição de livro didático a tem), um hospital público, onde a prática médica é regida pela fé na ciência e na tecnologia e a distribuição de recursos determinada por um cálculo puramente utilitário, um departamento da universidade de forma encoberta ou abertamente privilegiando paradigmas naturalistas ou racionalistas ou desconstrucionistas.

 

A implicação política fundamental do pluralismo confessional é que o Estado deve tratar todos estes vários corpos “baseados na fé”, e não apenas os “religiosos”, como igrejas ou mesquitas, com justiça. Em termos concretos, isto significa a distribuição de recursos públicos, como financiamento ou certificação, a cada [corpo] de uma forma equitativa, não (des)favorecendo qualquer um apenas por conta de sua perspectiva confessional. O pluralismo confessional defende as reivindicações de liberdade religiosa de instituições estruturalmente plurais e o dever dos Estados de respeitar essas reivindicações. Kuyper foi um temível porta-voz e defensor dele.

 

Pluralismo de princípios neste segundo sentido se opõe ao, bem, pluralismo “sem princípios”, quer um pluralismo puramente gerencial em que o termo “justiça” é usado (se for usado) para aplicar a tudo o que acontece para emitir a partir de um mero processo de interesse-corretagem, ou, pior ainda, um abandono relativista do direito de qualquer pessoa fazer reivindicações públicas de verdade. Pluralismo sem princípios (qualquer versão) efetivamente lança a toalha na luta pela justiça e deixa seus resultados nas mãos do mais barulhento e do mais forte, o que hoje muitas vezes significa o mais abundante.

 

Mas o pluralismo de princípios procura espaço para a diversidade precisamente para permitir que reivindicações universais em matéria de justiça, todo o peso de uma comunidade de convicções, sejam projetadas no debate público. É por causa de seu compromisso com a busca da verdade universal que ele resiste a reivindicações monopolistas por parte dos porteiros da esfera pública para determinar o que conta como verdade pública. Tais alegações preventivas deslegitimam e marginalizam o tipo de vozes dissidentes minoritárias dos quais (como seguidores de um rabino galileu fora da lei são obrigados a afirmar), a verdade, de fato, às vezes emerge.

 

No Ocidente moderno, o pluralismo de princípios permanece contra duas alternativas monistas rivais às quais Kuyper desde o início buscou diagnósticos críticos. A mais antiga é a “Cristandade”, entendida como a garantia legal de primazia pública, e até mesmo exclusividade, para a fé cristã. Kuyper teve que enfrentar tradicionalistas em seu próprio eleitorado calvinista que queriam se apegar a tal primazia. Ele mesmo frequentemente falava da Holanda como uma “nação cristã”, mas com isso ele quis dizer da marca histórica profunda do calvinismo em sua cultura e constituição. Ele dava graças por esse legado, mas não recorria a ele para montar uma reivindicação contemporânea de um estado confessional. Ele procurou lembrar a seus seguidores que o calvinismo ortodoxo, embora tenha sido decisivo para a formação histórica do núcleo da nação, agora representava apenas um décimo da população. Defender o caráter cristão da nação poderia agora só funcionar democraticamente de baixo para cima e já não depender de vantagem constitucional herdada. Como Bratt coloca, para Kuyper, “O Calvinismo não era um estabelecimento de outrora, mas uma filosofia de diversidade”.

 

A mais recente alternativa monista é o “secularismo”, entendido como a concessão legal de primazia pública, e mesmo a exclusividade, a visões de mundo secularistas. Este é o principal desafio que os cristãos ocidentais enfrentam hoje, e não apenas na França, onde ele é a política de Estado oficial, ou nos EUA e Canadá, onde muitos secularistas, incluindo muitos juízes, acham que é. Como Bratt relata, foi a tentativa de elitistas secularistas holandeses (alguns deles protestantes liberais) de forçar as escolas calvinistas ortodoxas a sair do negócio que mais energizou o contra-movimento no qual Kuyper levantou-se rapidamente na década de 1870 para ser o timoneiro formidável. O secularismo está novamente em movimento em muitas democracias ocidentais, não necessariamente de modo conspiratório ou malévolo, mas muitas vezes de maneira vexatória. Ele está se manifestando em duas grandes tendências políticas, ambas as quais encontram apoio de vozes à esquerda, direita e centro da política. O exemplo de Kuyper nos lembra que é necessário que os cristãos de hoje tomem medidas contra ambos.

 

Uma tendência é a tentativa de resistir (ou desfazer) o pluralismo confessional em educação, saúde, relações de trabalho, e em outros lugares, seja pela simples exclusão legislativa ou burocrática da diversidade confessional, ou pela implantação de códigos anti-discriminação, de modo a restringir os direitos dos crentes individuais ou de associações baseadas na fé de agir de acordo com suas convicções mais profundas. Lamentavelmente, o ponto de inflamação mais visível desta campanha é o crescente conflito entre os direitos (próprios) das minorias sexuais não serem discriminadas e os direitos (próprios) de indivíduos religiosos ou associações não serem coagidos a agir contra a sua ética sexual em assuntos de trabalho ou de prestação de serviços. No Reino Unido, por exemplo, isso levou ao resultado claramente antiliberal de as agências de adoção católicas, com um belo histórico de alcançar as crianças nos lugares mais difíceis, serem forçados a abandonar um princípio de longa data da teologia moral católica ou a fechar as portas.

 

Esta disputa pouco construtiva foi imposta a cidadãos cristãos contra sua vontade; eles não deram início a esta luta particular. No entanto, é uma questão reveladora perguntar por que confrontos equivalentes não são evidentes em outros terrenos nos quais uma cosmovisão cristã se choca com as seculares dominantes. Por que, por exemplo, as escolas cristãs do Reino Unido não estão sob pressão legal para alinhar seus currículos de economia com um currículo nacional imposto pelo Estado refletindo o governante paradigma utilitário neo-clássico? A resposta deprimente é: porque eles ainda não discerniram que uma visão cristã da economia diverge daquele paradigma “em suas raízes”, como Kuyper costumava dizer. Ou: por que hospitais cristãos não entram em conflito com a lei secular seguindo a resistência à visão de mundo mecanicista que alimenta o excessivo recurso à grande medicação patrocinada pela indústria farmacêutica, e não faz campanha por espaço e financiamento de formas mais holísticas de cuidado? Onde os cristãos forem realmente sérios acerca do pluralismo confessional, eles vão levar “todo o peso de suas convicções” para influenciar as políticas públicas em geral.

 

A segunda tendência política secularista hoje é o surgimento do que Philip Bobbitt tem apelidado de “estado de mercado”. Isso está provocando manifestações de individualismo e estatismo ainda mais prejudiciais do que aquelas que Kuyper teve de enfrentar. Por um lado, há uma mercantilização desenfreada da sociedade — a subserviência progressiva das relações sociais e ecológicas complexas e delicadas aos fins do intercâmbio comercial e da gratificação consumista. Por outro, há um estado burocrático constantemente invasor, restringindo as instituições da sociedade civil e esvaziando as estruturas da democracia. Os dois operam lado-a-lado.

 

O detalhado relato de Bratt acerca da continuada campanha de Kuyper por reformas sociais e econômicas para o capitalismo industrial explorador dos seus dias, e ainda sem abraçar um estado arrogante, mostra como a sua visão pode ser uma inspiração para os cristãos de hoje enfrentarem essa dupla ameaça. Mas é essencial que os cristãos também reconheçam que essas forças são profundamente secularizantes exigindo tanto a busca de análise crítica e oposição comprometida quanto a primeira.

 

A luta de Kuyper por um “pluralismo de princípio” era na prática mais confusa do que meu resumo tem sugerido. Mas a leitura do sincero retrato de Bratt nos lembra que as grandes idéias políticas como esta são sempre formuladas de forma inconsistente, apreendidas parcialmente, implementadas irregularmente e produzem imprevistas conseqüências; seu destino inevitavelmente está nas mãos de indivíduos e grupos profundamente falíveis. No entanto, essa luta nos deixou ideias poderosamente convincentes que merecem reapropriação crítica hoje enquanto enfrentamos os desafios de um mundo cada vez mais desconcertantemente plural, fraturado, e inseguro.
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Tradução Livre: Daniel Dliver @danieldliver