“- Qual é o seu único conforto, na vida e na morte?”

“- O meu único conforto é meu fiel Salvador Jesus Cristo.”

Com estas palavras abre-se o catecismo de Heidelberg, que em janeiro completou 450 anos e é reconhecidamente um dos mais importantes símbolos confessionais do protestantismo. Não apenas seu caráter Cristocêntrico, como também seu profundo sentido espiritual revelam-se ao longo de todo o primeiro artigo:

“- A Ele pertenço, em corpo e alma, na vida e na morte, e não pertenço a mim mesmo. Com seu precioso sangue Ele pagou por todos os meus pecados e me libertou de todo o domínio do diabo. Agora Ele me protege de tal maneira que, sem a vontade do meu Pai do céu, não perderei nem um fio de cabelo. Além disto, tudo coopera para o meu bem. Por isso, pelo Espírito Santo, Ele também me garante a vida eterna e me torna disposto a viver para Ele, daqui em diante, de todo o coração.”

Captura a minha atenção, nesse primeiro artigo do catecismo, a conexão imediata entre a doutrina e a existência. O texto não fala de algo abstrato, puramente teológico, mas de algo dramático, duma questão de vida e morte. O que pode ser tão amplo que abarque a vida e também a morte? E não apenas amplo mas também urgente, já que a vida está o tempo inteiro à beira da morte?

A questão que é de “vida e morte” é a questão do meu consolo último, do esteio da minha existência; e aqui as coisas se tornam não apenas momentosas, urgentes e solenes, mas profundamente afetivas e íntimas. “O meu conforto na vida e na morte” é coisa sobre a qual não posso me pronunciar sem respirar fundo e até fechar os olhos. Pois não se trata apenas de uma confissão sobre o que se concorda ou sobre correção doutrinária, mas sobre a minha posição agora, nesse instante, sobre como eu me sinto a respeito de mim e do meu destino – por isso, aparentemente, uma tradução Brasileira do catecismo traz a palavra “fundamento” no lugar de “conforto” ou “consolo” (como alertou-me em tempo o meu amigo Daniel). Trata-se de algo sobre “o que é o meu chão”, parafraseando a tradução Brasileira. Qual é o fundamento da minha existência? O que dá sentido para minha vida, e orientação, e segurança?

Todo o primeiro artigo do catecismo gira em torno da segurança: “a ele pertenço… e não pertenço a mim mesmo… Agora ele me protege… tudo coopera para o meu bem… Ele também me garante a vida eterna e me torna disposto a viver para Ele…” A Reforma compreendeu muito bem que a realidade da salvação é expressa em uma reorganização da existência em torno de Cristo, e que uma das primeiras expressões disso é a segurança Cristã – talvez não a primeira em termos temporais, mas certamente em importância real. Essa segurança precisa ser exposta, trazida à frente e alimentada até tornar-se uma autodefinição: “Eu sou isso: eu sou alguém que está nas mãos de Jesus Cristo, alguém que viverá e morrerá Nele”. Ela é natural para o cristão, mas não é automática: precisa receber chuva e sol, sobreviver a ventos e pragas, lançar raízes e engrossar; e um dos modos de alimentar essa planta é a confissão da fé, quando dizemos para Deus, para o mundo, e para nós o que cremos e o que somos.

Para mim é impossível não pensar, aqui, nas palavras do apóstolo Paulo em Romanos, naquele capítulo crucial e climático da Escritura: “Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós não dará graciosamente com ele todas as cousas?” (Rm 8.32). Essa é a lógica do cristianismo: é a hermenêutica fiel. Não hermenêutica da Bíblia apenas, e nem mesmo uma hermenêutica filosófica, mas algo muito mais visceral e que condicionará tanto a nossa leitura Bíblica quanto a nossa interpretação filosófica: aquele “sentimento da existência” cheio de gratidão e segurança, e que não pode senão inferir do evangelho que todas as coisas cooperam para o meu bem (Rm 8.28), e que celebra isso secretamente com um sorriso suave diante da vida e diante da morte, um sorriso que não é destruído nem quando se chora de tristeza.

“Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós não dará graciosamente com ele todas as cousas?”

“O Espírito testifica com o nosso espírito que somos Filhos de Deus” (Rm 8.14). Certíssimos estavam os puritanos e, exatamente nesse ponto, o Dr. Martin Lloyd Jones, que me introduziu a eles: a certeza da salvação é mesmo muito importante, e não deve ser trivializada nem dificultada. Trata-se de uma pedra muito preciosa que já está lá no coração do regenerado, talvez ainda em estado bruto aguardando lapidação; mas a seu tempo ela será visível, em seu devido lugar: a jóia esplêndida que só pode ser encontrada no dedo dos eleitos.

O que o catecismo quer comunicar não é apenas uma doutrina, mas o pathos apropriado a ela, e faríamos muito bem em apreendê-lo. Eu apenas acrescentaria que será extremamente útil lançar luz sobre a presença e o caráter dos ídolos contemporâneos, aos quais nos agarramos para constituir nossa identidade e ganhar segurança. Pois com facilidade essa confissão sobre Jesus ser o único conforto é pronunciada hipocritamente ou, no mais das vezes, desatentamente, enquanto ainda buscamos conforto em outras fontes, que podem ser o sucesso vocacional, o marido e a esposa, um bom videogame ou uma ideologia política (ídolo corriqueiro entre evangélicos à esquerda e à direita do mundo).

Francis Schaeffer usava uma interessante metáfora para descrever o modo como preparava as pessoas para o evangelho: “arrancar o telhado”. As pessoas costumam viver inconscientes da contradição irreconciliável entre sua descrença em Deus (descrença que sempre pressupõe crenças alternativas) e sua condição humana. Expor e denunciar essa tensão, mostrar que é impossível ser humano sem Deus, seria “arrancar o telhado” pelo bem da pessoa.

Arrancar o chão da falsa segurança é frequentemente mais difícil que arrancar o telhado da ideologia. Não dá pra fazer somente com palavras e diálogo; primeiro a casa inteira tem que cair. É sempre Deus mesmo quem tira o chão de alguém, quando quebra seus ídolos e expõe com toda a crueza a sua vaidade. Deus é quem promove em nós uma santa insegurança, até às raias do desespero, para que encontremos nele a segurança genuína, a consolação que transborda por meio de Cristo (2Co 1.8-9). Mas se pudemos dialogar com as pessoas e interpretar esse juízo, depois, durante ou mesmo antes da quebra dos ídolos, estaremos talvez “preparando o caminho do Senhor”. Não podemos produzir a fé correta, mas é nosso dever despertar a dúvida sobre a fé idólatra. E nada como uma boa dúvida para dissolver devoções ilusórias e nos relançar na rota da segurança autêntica!

Roçar a terra do coração, para deixar a Esperança nascer…

Qual é o chão sobre o qual pisamos? É mesmo o chão da confissão de fé, a única fonte possível de conforto? O que é pra nós a fonte de significado e segurança, aquilo que sustenta nosso senso de estabilidade, que é o ponto de partida para nossas incursões no mundo do trabalho e na cultura, e o lugar de retorno sobre o qual construímos nossas expectativas e planejamos o futuro?

Jesus é o único consolo porque é o Novo Homem; porque nele o Pai fez “novas todas as coisas”. Ele é o primogênito e a raiz da Nova Criação. Nele todas as coisas são reconciliadas com Deus; nele temos a Deus e a nós mesmos de forma perfeita. Ele é, objetivamente, o único fundamento e o único conforto. Mas é preciso que ele seja o meu e o seu conforto; e não apenas o nosso consolo para ganhar o céu, mas também o consolo para vivermos e morrermos; um fundamento para sermos humanos no mundo. Se desejamos que a segurança Cristã transpareça em nosso viver ordinário, é preciso que cada aspecto desse viver ordinário seja fundamentado e enraizado no extraordinário, que é Cristo. E onde Cristo não for o chão da casa tudo será incerto, inseguro, dominado pelo pavor da finitude e do vazio. Porque não há outro chão. Sem esse chão só há a areia fina da finitude. Pense nisso, medite nisso: a vaidade e a fragilidade de tudo o que somos e fazemos, à parte de Jesus Cristo. Não, isso não é cultivar o desânimo; é roçar a terra do coração para deixar a Esperança nascer.

Lembremo-nos do catecismo de Heidelberg, e do apóstolo Paulo, que inspirou o catecismo: não há outro conforto senão aquele que vem do Deus de toda a consolação (2Co 1.3-10). Não há outro, não apenas para a “vida religiosa”, para a “salvação eterna”, para o púlpito e para organizar a vida na comunidade eclesiástica; não há outro razão para sermos humanos, mesmo em face da morte. Você estará perfeitamente firme e seguro, se desistir de construir sobre a areia e plantar sua casa em uma rocha; se permitir que Deus desfaça todas as suas seguranças no fogo do desespero, para que sua segurança esteja apenas naquele que ressuscita os mortos.