“Creio em Deus Pai, todo-poderoso, Criador do céu e da terra.

Creio em Jesus Cristo, seu único Filho nosso Senhor; que foi concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos Céus, está sentado à direita de Deus Pai Todo-Poderoso, donde há de vir julgar os vivos e mortos.

Creio no Espírito Santo, na santa Igreja católica (ou universal), na comunhão dos santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, e na vida eterna.”

 

O “Credo” Apostólico, que remonta aos primeiros séculos do cristianismo, começa (obviamente) com o verbo “crer”, como observa quase toda introdução que se escreve a ele. É claro que o Credo é antes de tudo uma confissão a respeito da fé, mas nada podemos falar do ato da Confissão sem antes considerar a natureza da crença.

Sob certo ângulo, é verdade que ocupar-se demasiado do “crer” enquanto verbo, ação e posicionamento do homem pode nos tirar completamente do foco, uma vez que o Credo jamais foi a celebração ou anúncio de uma condição subjetiva do indivíduo; pelo contrário, ele está completamente absorvido pelo objeto da crença, exatamente como o estado de crer é um estado voltado para fora, extático, intencional, tanto que enquanto falamos do interior da crença, não temos consciência de sua força ou estrutura, e sim de seu interesse.

E talvez pudéssemos nos mover diretamente para isso que é o nosso interesse comum, não fosse “a crença” em geral e “a crença religiosa”, em particular, uma questão tão controversa no mundo de hoje. E na verdade a natureza do ato de fé é realmente algo confuso na cabeça dos próprios cristãos. De modo que não há como seguir sem tocar no assunto.

Como preâmbulo ao conceito de fé, é preciso mencionar que a “crença” não é privilégio (ou sina, como queira) de pessoas religiosas. Em termos gerais, a crença é incontornável; pois devido à estrutura da consciência humana, tendemos a estabelecer objetivos para as nossas ações; somos seres conscientemente intencionais. E lançamos mão da imaginação para construir quadros possíveis sobre o resultado das nossas ações, suplantando com isso a prisão de outras criaturas ao instinto. Ocorre que não é possível construir esses quadros e julgar os melhores cursos de ação sem formar crenças sobre como as coisas são, sobre como o mundo funciona, sobre o que é possível e impossível, e sobre o que é melhor para nós. É muito comum que as pessoas associem esse tipo de discussão à idéia de racionalidade; mas a razão é apenas uma ferramenta construtiva; os blocos com os quais ela trabalha são experiências do mundo e as crenças que formamos sobre elas. Por essa razão, não há hoje livro-texto sobre a natureza do conhecimento que não discuta o assunto em termos de “crenças”.

Mas quando passamos das crenças em geral para as “crenças religiosas”, muita gente imediatamente pensa que isso não lhe diz respeito. Afinal “crenças religiosas” seriam “crenças sobre deuses ou coisas sobrenaturais”. Tenho constatado que essa suposição é uma das confusões mais comuns e amplamente disseminadas entre os leigos no campo da filosofia da religião; e por isso mesmo ela tem sido facilmente explorada pelos críticos da religião tradicional, os quais se sentem confortáveis e justificados em considerar a descrença, por exemplo, em um Deus “sobrenatural” a condição humana “default”, como se a descrença fosse a neutralidade, e a crença o acréscimo contingente e inessencial à condição humana pura, i.é., “secular”.

É o “Secular”, Secular?

Ocorre, no entanto, que toda essa idéia da secularização como a remoção de um “excesso” de crença, de uma “sobra cultural” distinta da natureza humana é provavelmente uma construção ideológica, formada a partir de algumas das ciências humanas nascidas no interior da modernidade e destinadas, desde sua concepção, a naturalizar o próprio fenômeno da modernidade, como observou muito bem o Dr. John Milbank em “Theology and Social Theory” e mais recentemente Charles Taylor em “A Secular Age”, quanto à visão da secularização como uma “subtração”. Pelo contrário, há sinais de que em lugar de uma “subtração”, o que tivemos foi uma “substituição”; a modernidade não eliminou, mas apenas relocou a crença religiosa, como observou o Dr. Colin Gunton (King’s College London):

“A modernidade é a era que deslocou Deus como o foco para a unidade significado do ser. O que quero dizer com isso? Antes de tudo, que as funções atribuídas a Deus não foram abolidas, mas trocadas – relocadas, como se diz hoje. […]. Deus não é mais necessário para dar conta da coerência e significado do mundo, de forma que o assento da racionalidade e do significado se torne não o mundo, mas a razão e a vontade humana” . /Conlin Gunton, The One, the Three and the Many: God, Creation and the Culture of Modernity. The 1992 Bampton Lectures. Cambridge: CUP, 1993, p. 28./

Mas nada como um bom exemplo. Consideremos o seguinte quadro de Frida Kahlo:

Em “o marxismo dará saúde aos doentes” (1954) a atribuição de funções soteriológicas e messiânicas ao materialismo dialético simbolizado pela figura de Marx, assim como a identificação do mal com o “Tio Sam” exemplificam um padrão que se repete na cultura secular, embora nem sempre de forma tão clara.

Ou seja, a compreensão do mundo contemporâneo passaria pelo rastreamento da funções divinas relocadas na cultura secular, e pela compreensão da relação que o homem “secular” tem com os objetos que absorveram essas funções. Mas como rastrear essas funções divinas? Uma vez que elas sempre foram objeto de fé, o caminho mais direto seria rastrear as crenças religiosas. E isso nos leva de volta ao tema do post:

 

O que é uma Crença Religiosa?

A crença religiosa não se define pela identidade concreta “objeto”, mas pela relação que é estabelecida com esse “objeto”. Ou seja, com sua função no sistema de crenças (também chamado de “estrutura noética”, expressão que vem do grego “nous” [mente] e que nada tem a ver com “Noé”!). Uma forma bastante popular de distinguir “secularismo” de “religião” é distinguir a forma como seus respectivos sistemas de crença são construídos. A religião seria construída com “Dogmas” sobre realidades “sobrenaturais” – os infames “dogmas religiosos”. E o secularismo moderno construiria suas crenças de forma aberta e não-dogmática, por meio de justificativas racionais controladas pela consciência autônoma (adulta, iluminada).

Num ponto, essa visão está correta: crenças religiosas são crenças sustentadas com força dogmática. Isso acontece porque a crença religiosa veicula um “interesse supremo”. Essa característica é compartilhada em diversas religiões, e indica qual a característica central da crença religiosa: o que caracteriza a religião não é nem a crença em “sobrenaturais” (o Budismo e o Pitagorismo, por exemplo, ignoram o “sobrenatural”), nem a presença de um dogma explicitamente formulado (como é o caso em religiões tradicionais aborígenes, por exemplo), mas a função que um objeto concreto ou imaginário desempenha na organização do universo humano.

Falemos desses objetos: quais são eles?

Aqui entra um fato curioso. Qualquer coisa pode operar como objeto de devoção religiosa. Os pitagóricos, por exemplo, cantavam hinos de adoração ao número “10”; e tem gente hoje que adora “pés” (é, a podolatria existe mesmo). A crítica da filosofia da religião ao “secularismo moderno” não é meramente que não devemos profanar objetos “religiosos” e ignorá-los privilegiando coisas “seculares”. Pois a rigor, não existem objetos religiosos e seculares. É a relação que temos com alguma coisa que a torna ou não religiosa. Coisas “sagradas” em uma religião podem ser “profanas” em outra. Don Richardson, em o Totem da Paz, conta a história de como ele encontrou uma tribo na qual o herói da história sempre era o traidor mais engenhoso, e assim inicialmente eles honraram… Judas! Isso mesmo, Judas! Até que descobriram que Jesus se enquadrava na única exceção a essa regra: ser uma dádiva de paz do inimigo (Deus, no caso).

A crítica da filosofia teísta cristã ao secularism” é de que ele, infalivelmente, desenvolve relações religiosas com objetos que, na melhor das hipóteses, carecem de “atributos divinos” suficientes para dar conta do recado e, na pior das hipóteses, produzem uma violação da racionalidade. Vou dar aqui apenas um exemplo, da pena de Timothy Keller:

 

“Depois que começou a crise econômica global, em meados de 2008, seguiu-se uma trágica sucessão de suicídios de indivíduos antes ricos e bem relacionados. O diretor financeiro da Freddie Mac, Federal Home Loan Mortgage Corporation (FHLMC), enforcou-se em seu porão. O presidente executivo da Sheldon Good, uma das mais importantes imobiliárias dos Estados Unidos, deu um tiro na cabeça ao volante de seu Jaguar vermelho. Um administrador financeiro francês que investia a fortuna de muitas das principais famílias europeias, inclusive de famílias reais, tendo perdido USD 1,4 bilhões do dinheiro de seus clientes no esquema de Bernard Madoff Ponzi, cortou os pulsos e morreu em seu escritório na Madison Avenue. Um executivo sênior do Banco HSBC se enforcou no guarda-roupa de uma suíte de GBP 500 por noite em Knightsbridge, Londres. Quando um executivo da Bear Sterns ficou sabendo que não seria contratado por J.P. Morgan Chase, que havia comprado sua empresa em falência, tomou uma overdose de drogas e saltou do vigésimo nono andar de seu prédio de escritórios […] tais fatos apresentavam uma terrível semelhança com os ocorridos na quebra da bolsa de 1929.”

“Na década de 1830, quando Alexis de Tocqueville registrou suas famosas observações sobre a América, notou ‘uma estranha melancolia que assombra os habitantes […] no meio da abundância’” […].
“Qual é a causa dessa ‘estranha melancolia’ que permeia nossa sociedade mesmo em tempos de explosão de atividade frenética, e que se transforma de imediato em desespero quando a prosperidade diminui? Tocqueville diz que ela vem do ato de tomar ‘uma alegria incompleta deste mundo’ e construir a vida inteira em torno dela. Esta é a definição de idolatria”. /Keller, Timothy. Deuses Falsos. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2010, p. 9-10./

 

De fato, algumas crenças e adesões alegadamente seculares carecem de características distintivas que as coloquem em uma categoria claramente diferente das crenças de religiões tradicionais em “deuses” e “poderes sobrenaturais”.

– Se isso for verdade, o que define a crença religiosa não é o objeto, mas a forma do crer. Então precisamos definir melhor “crença religiosa”.

Para fins práticos, vamos identificar “dogma religioso” com “crença religiosa”. Nesse caso, o que é o “dogma”? O dogma não pode ser apenas uma “crença sustentada de forma absoluta e incorrigível, sem bases racionais”. Essa definição não explica nada. Eu posso ser dogmático sobre o modo correto de tomar café.

Do ponto de vista da epistemologia da crença religiosa, um “dogma religioso” é experimentado na consciência do crente como (1) uma crença que tem papel fundacional no seu sistema noético (seu sistema de crenças) e que, além disso, (2) parece a ele evidente e incorrigivelmente válida e (3) é sustentada com paixão ou interesse existencial extraordinário (Tillich falava em “ultimate concern”, mas isso talvez seja muito forte).

Aqui se encaixam muitas crenças religiosas conhecidas: o monoteísmo judaico, a divindade de Jesus Cristo, a unidade do todo Brahman-Atman no hinduísmo, a crença em Maomé como o maior dos profetas no Islã, etc. Mas aonde quero chegar com essa conversa sobre crença religiosa? Quero chegar à pergunta principal:


Os Sistemas de Crença Secularistas são “livres” de “dogmas religiosos”?

De forma alguma. O Dogma religioso permanece no interior da mente secular de forma oculta, o que revela seu caráter ideológico. Vamos retomar a distinção entre “religioso” e “secular” (mas sem perder de vista sua relatividade, que observamos há pouco) em termos de “dogmas”: a modernidade de fato propôs crenças seculares para substituir os dogmas religiosos, alegando que seus substitutos seriam baseados na razão e na ciência (daí a identificação “pop” de religião e dogma). Mas algumas dessas crenças seculares não apresentam diferenças qualitativas suficientes para serem distinguidas de “dogmas”. E o que dizemos aqui sobre “dogmas seculares” não é recurso retórico; é um dos resultados importantes da filosofia no século XX. Vou começar citando o que diz o Dr. David Ehrenfeld em “A Arrogância do Humanismo” (Ed. Campus) sobre a Cultura:

 

“Pondo de lado a noção de dignidade e valor humanos, a qual faz parte de muitas religiões, chegamos de imediato ao âmago da religião do humanismo: uma fé suprema na razão humana – sua capacidade para enfrentar e resolver os muitos problemas com que o ser humano se defronta, assim como para reordenar o mundo da Natureza e reformular os assuntos de homens e mulheres de modo que a vida humana prospere. Por conseguinte, assim como o humanismo está comprometido com a fé incondicional no poder da razão, também rejeita outras afirmações de poder, inclusive o poder de Deus, o poder de forças sobrenaturais e até o poder não dirigido da Natureza associado com o cego acaso. Os dois primeiros não existem, de acordo com o humanismo; o último pode, com algum esforço, ser dominado. Como a inteligência humana é a chave para o êxito humano, a principal tarefa dos humanistas é afirmar o seu poder e proteger as suas prerrogativas toda vez que são questionadas ou desafiadas.” /Ehrenfeld, David. Arrogância do Humanismo. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 3/

“Os humanistas gostam de atacar a religião por seus pressupostos inverificáveis, mas o humanismo também possui seus próprios pressupostos impossíveis de testar. São dados, as coisas que são inconscientemente aceitas e raramente ou nunca debatidas. Se ocorrem em outros, os humanistas chamam-lhes superstições ou, mais polidamente, artigos de fé. Como nunca são testados ou questionados, podem ser enunciados como hipóteses em provas matemáticas, em breves sentenças declarativas.
O principal pressuposto humanista, o qual engloba todas as nossas relações com o meio ambiente, assim como algumas outras questões, é muito simples. Diz o seguinte:
Todos os problemas são solúveis.
Para deixar clara a sua ligação com o humanismo, basta acrescentar as duas palavras que estão implícitas; passa então a ser:
Todos os problemas são solúveis por pessoas.
[e há as suposições secundárias]
Muitos problemas são solúveis pela tecnologia; Os problemas que não são solúveis pela tecnologia, ou apenas pela tecnologia, tem soluções no mundo social (política, economia, etc); A civilização humana sobreviverá; O homem é naturalmente bom e só é corrompido pelo meio; O problema do mundo é apenas a má distribuição de renda.”
/Ehrenfeld, David. Arrogância do Humanismo. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 12-13/

 

Um outro exemplo muito interessante vem do filósofo da ciência Thomas Kuhn:

“O homem que adota um novo paradigma nos estágios iniciais de seu desenvolvimento frequentemente adota-o desprezando a evidência fornecida pela resolução de problemas. Dito de outra forma, precisa ter fé na capacidade de um novo paradigma para resolver os grandes problemas com que se defronta, sabendo apenas que o paradigma anterior fracassou em alguns deles. Uma decisão desse tipo só pode ser feito com base na fé”
[…] Mas somente a crise não é suficiente. É igualmente necessário que exista uma base para a fé no candidato específico escolhido, embora não precise ser racional nem correta. Deve haver algo que pelo menos faça alguns cientistas sentirem que a nova proposta está no caminho certo e em alguns casos somente considerações estéticas pessoais e inarticuladas podem realizar isso.” /Kuhn, Thomas, A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 201.[1]/

 

A modernidade secular propôs um mundo sem deuses e sem religião. Com a eventual morte dos “deuses” da modernidade (anunciada por Nietzsche) e toda a crítica da razão e da ciência moderna no século XX, tornou-se ainda mais incoerente sustentar crenças “seculares” com paixões “religiosas”. O “crente secular”, a princípio não deveria ter desenvolvido dogmas de nenhum tipo. Ou seja: não deveria apresentar nenhuma crença que se enquadrasse na descrição preliminar de “dogma” que introduzimos acima:

 

(1)     uma crença que tem papel fundacional no seu sistema noético e que, além disso,
(2)     parece a ele evidente e incorrigivelmente válida e
(3)     é sustentada com paixão ou interesse existencial extraordinário[2]

 

Entretanto, mesmo depois do desmascaramento da contingência de seus fundamentos, e do colapso da razão moderna, a mente secular continua se relacionando com seus valores supremos da mesma forma que a mente religiosa. Isso é visível, particularmente, na militância ligada a alguns dogmas paracientíficos, como o naturalismo metafísico de Dawkins, com sua noção de universo como sistema uniforme e fechado; ou o cientificismo, que trata a ciência como única fonte de conhecimento verdadeiro; na militância em dogmas políticos como o libertarianismo, que defende a autonomia absoluta do indivíduo em relação à sociedade; ou no dogma do materialismo dialético, com a noção de progresso irreversível por meio de sínteses revolucionárias; ou em dogmas antropológicos, como o construtivismo sexual da teoria Queer, que rejeita a noção de normatividade sexual.

Na verdade nem é possível o conflito entre duas alternativas se elas não pertencem à mesma categoria. Quando o tema é a sede, não pode haver conflito entre chupar uma laranja ou chutar uma pedra. Mas pode haver conflito entre chupar uma laranja ou um limão. O mero conflito entre o secularismo e as religiões indica que ele pertence à mesma categoria. A questão é apenas identificar de que forma o secularismo realiza funções religiosas.

É nesse sentido que o secularismo militante tem se mostrado extraordinariamente acrítico. Como se a mera crítica dos “deuses” fosse capaz de exorcizar atitudes de crença “dogmática” (ou, para usar a linguagem técnica, estados doxásticos[3] funcionalmente religiosos). Isso pode ser um sinal do caráter ideológico do secularismo.

Pois ironicamente, os únicos religiosos que não sabem que o são, seriam… os secularistas.
E essa é a razão porque eu ironizei, num outro dia, a sugestão de Alain de Botton de construir um “templo” para ateus, projeto criticado por ninguém menos que o próprio Richard Dawkins. Ela mostra que essa verdade, quanto ao fundo religioso oculto de secularismo e de qualquer ateísmo, ainda que seja cochichada debaixo da cama, no final será “anunciada dos eirados”.

Cf. Alain de Botton e a Evolução do Ateísmo


Crer é uma Opção?

É verdade que a tradição cristã condena a “descrença”. Mas com isso ela não quer dizer que haja apenas um vazio no lugar da fé; por isso a descrença tem uma associação interna com a “idolatria”, que seria o termo exato para “crença errada”. A “incredulidade” seria a “descrença” em Deus acompanhada de uma “crença errada” que a substitui. Eu diria, em conclusão, que o Credo é inevitável; de um jeito ou de outro, todo mundo é crente. Pois não há ser humano que não carregue em seu ventre (talvez mais do que em sua cabeça) um Credo, que pode ser explícito ou implícito. Ele está lá, permeando as atitudes, organizando os afetos, colorindo o olhar de cada pessoa. Não, a crença não é uma opção. O que é uma opção é até que ponto permitiremos que a nossa crença seja examinada. O descrente precisa perguntar: “se não creio em X, porque não creio?” “Porque considero Y mais plausível?” “O que constitui o sistema de crenças com base no qual considero o Credo Cristão implausível?” “Que crença se esconde por trás da minha descrença?” Será, por exemplo, um credo naturalista como este aqui (de um colega anônimo)?

Creio em um só Acaso, Todo-Poderoso
Criador do céu e da terra
de todas as coisas visíveis.
Creio em uma só Razão, a mente humana.
Filha Unigênita do Acaso
Gerada por Acaso antes que o Universo do Nada viesse a existir.
Pelo acaso todas as coisas vieram a existir.
E nós homens,
para a nossa própria salvação,
pensamos para existir. E temos consciência de que a consciência não existe,
Que a Verdade é Incerta,
A Liberdade é uma Ilusão,
A Justiça uma invenção.
Bem como todas as coisas que não são racionalmente comprovadas,
Até serem comprovadamente úteis para nós.
Creio na Ciência,
Inquestionável, Universal, Absoluta, porém Incerta.
Confesso uma só tecnologia para resolução de todo mal
existente no Universo e  na Humanidade,
para a dominação final da Natureza, e a Conquista final e Esclarecimento de todos
os Mistérios.
Tecnologia essa que nos trará Paz, Prosperidade, Harmonia e Vida Eterna por
Todos os Séculos,
Assim Seja.

Embora reconhecidamente caricatural e irônico, o Credo acima pode realmente refletir a crença inexpressa de muitos descrentes. E essas crenças, mesmo que aparentem ser simples, honestas e minimalistas, precisam ser examinadas, confirmadas e plausibilizadas, tanto quanto quaisquer outras. Especialmente se, ao serem levadas às suas consequências lógicas, se mostrarem absurdas e impraticáveis. Não basta rejeitar o Credo Apostólico. É preciso checar se o seu credo alternativo é viável. E até mesmo se é saudável; pois se Chesterton estiver correto, “quando as pessoas não acreditam em Deus, terminam acreditando em qualquer coisa”.

Creio que vale encerrar com uma observação muito perspicaz de Timothy Keller em “Fé na Era do Ceticismo”:

“A única maneira de levantar dúvidas de forma correta e justa sobre o Cristianismo é descobrir a crença alternativa por trás de cada uma de suas dúvidas e, em seguida, indagar de si mesmo os motivos que o levam a acreditar nela. Como saber se sua crença é válida? Seria incoerente exigir maior comprovação da crença cristã do que da sua, mas é o que em geral acontece. Para ser justo, você precisa duvidar de suas dúvidas.”

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[1] O próprio Kuhn cita os estudos anteriores do cientista e filósofo da ciência de Cambridge Michael Polanyi, particularmente em sua obra “The Tacit Dimension”, onde ele descreve a estrutura tácita/oculta de crenças que necessariamente fundamenta e possibilita todo e qualquer questionamento, dúvida e criticismo.

[2] Na verdade a eliminação de crenças com papel religioso deveria levar a uma completa de-hierarquização doxástica (ou seja, na estruturação do sistema de crenças de alguém), uma vez que nenhuma crença poderia ter papel fundacional sem que houvesse provas ou ao menos bases (num sentido externalista) suficientes para tanto. E a de-hierarquização doxástica levaria a uma de-hierarquização afetiva, com o esvaziamento da paixão dogmática. Esse esvaziamento produziria em consequência um estado mental de “apatheia” doxástica no tocante a crenças funcionalmente religiosas. O secularismo não deveria, portanto, produzir nenhum tipo de militância doxástica (o que crer ou não crer), como se vê no movimento neoateísta. Isso faz transparecer uma irracionalidade no secularismo, que pode ser circunstancial ou fatal. Cabe ao secularista examiná-la.

[3] Doxástica: do gr. “doxa”, “opinião”. O termo é usado com sentido técnico em epistemologia, para referir-se à crença, às suas condições de possibilidade e às suas condições de justificação ou confirmação. Um estado “doxástico” é um estado mental que corresponde à adoção de uma determinada crença (sobre qualquer coisa: religião, ciência, memória, experiências sensoriais, etc).