O romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, é hoje um clássico da literatura moderna brasileira. Vinculado ao regionalismo, o livro foi publicado em 1938 e traz a história de uma família de retirantes nordestinos fugindo da seca em busca de um lugar onde possam viver. Os principais personagens são: Fabiano, o pai; Sinhá Vitória, a mãe; o menino mais velho; o menino mais novo; o papagaio; e a cachorrinha Baleia. Em 2018 a obra completa 80 anos de publicação e este texto pretende ser uma singela celebração.

O livro mostra como a inclemência da seca, a aridez da Caatinga e o abandono do governo se juntam para conspirar contra a vida de uma pequena família do interior do Brasil.

Desde o começo do romance fica evidente o embrutecimento das pessoas pelo modo como se tratam, pela dinâmica das relações que estabelecem, pela dificuldade na articulação da linguagem, pela aspereza dos sentimentos. Fabiano, por exemplo, “[e]ra bruto, não fora ensinado. […] Um cabra […] Bruto, sim senhor […] não sabia ler (um bruto, sim senhor)” (1986, p. 93).

Fabiano tem momentos excruciantes de sofrimento na tentativa de organizar o pensamento e articular uma fala que seja. Ele “[p]endia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopeias. Na verdade falava pouco” (1986, p. 20).

Todavia, ainda que haja uma força violenta de desumanização agindo na história, um peso de embrutecimento e animalização, há também um ímpeto de resistência do humano que se revela nas personagens, em sua vida interior e em suas relações. A esperança de encontrar um lugar melhor é uma potência irresistível que impulsiona os retirantes a seguir adiante. O exercício contínuo da memória e dos laços de família.

Ironicamente, o maior sinal de resistência do humano é protagonizado pela cachorra Baleia, cuja sensibilidade, solidariedade e afetividade contrastam com a desumanização circundante. Ela é figura lembrada através de toda narrativa ao confirmar a humanidade das personagens humanas. Ela guarda traços humanizados e, em seu comovente circular pela casa e interagir com família, inspira traços humanizantes.

Baleia, cujo nome também é sugestivo, pois chama atenção para a falta de água do seu ambiente de vida, é sempre alvo de violência, pontapés, xingamentos, mas perdoa sempre, salva a família da fome ao trazer um preá para o jantar, é paciente, espera seu momento, sua parte da refeição, isto é, os ossos. Baleia tem sonhos, sonhos de cão. Sua vida e morte são heroicas em proporção.

Em tempos atuais de tantas formas de embrutecimento, Vidas Secas segue sendo um chamamento à consciência humana, à consciência ambiental e ao respeito pelos animais não humanos.

 

Gladir Cabral

 

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 56. ed. São Paulo: Record, 1986.

 

 

  1. Este livro me impressiona pelo silêncio: ausência de falas, de humanidades, de Deus, de esperança. A primeira vez que li, pensava em Adão e Eva saindo do Éden, no silêncio, na humanidade perdida, no caminhar desesperançoso. Vidas Secas me ajudou a entender Gênesis, compadecer pelo migrantes e exilado.
    Nunca tinha pensado na questão ambiental, mas depois do seu comentário, parece que num ambiente estéril não há humanidade, matando o mundo a nossa volta, matamos o que está dentro de nós.

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