O menino corria alegremente, desviando-se das poças de água artisticamente formadas pela chuva da tarde, e procurando esconderijos entre as árvores frondosas. O objetivo da brincadeira era este mesmo: esconder-se pelo maior tempo possível. Para ele tudo isso era normal, nada de maravilhoso em brincar em um quintal grande e cheio de esconderijos providenciados pela natureza. Comer frutas que caem das árvores também não era nada fora do comum. Quem nunca saboreou uma manga fresquinha?

Mas quando assistia à TV, ele via aqueles prédios imensos, aquela gente toda bonita, bem arrumada. E então pensava: “que mundo é esse?”. Na escola, ensinavam que o futuro era morar nas cidades, ganhar um bom salário, ter um carro novinho. No início, o menino não entendeu muito bem o que isso significava, mas depois, de tanto falarem, também começou a imaginar uma vida assim: moderna, interessante e rica.

Sua mente ficava dividida entre o que vivia e experimentava e o que gostaria de viver e experimentar. Isso o fez ter mais garra para estudar, já que, como diziam seus professores, o melhor caminho para chegar onde você quer é estudando.

Mas os estudos quase sempre falavam sobre coisas totalmente estranhas ao seu mundo, e ele então passava a achar que estudar é uma coisa, viver é outra. Matemática, geografia, português, biologia… as classificações, os conceitos, nada falava sobre o quintal de sua casa, a mangueira ou a chuva que caia regularmente. Os cheiros da sua vida não eram sentidos quando ele abria o livro da escola.

Passou um bom tempo para ele então perceber que precisava se acostumar com esse outro mundo de sonhos. Sonhava vestir terno e ter um sorriso sempre no rosto. Via aqueles filmes em que o mocinho sempre era amado e as pessoas confiavam nele. Passou a querer ser assim também.

O menino, que já era adolescente, entendeu o recado: dedicou-se aos estudos e não parou de aprender. É verdade que o maior problema era a convivência com os colegas da escola. Alguns eram chatos e arrogantes e quase sempre faziam piadas com sua aparência ou sua cor. Mas também tinha um grupo menor, bem pequeno, que gostava dele; eles estudavam juntos e riam das bobeiras uns dos outros.

O menino sentia-se feliz, na maior parte do tempo, quando estava na escola, mas sonhava com algo maior. Queria uma vida melhor para ele e sua família. Descobriu que poderia aprender a construir casas e prédios. Foi aprendendo, aprendendo até conseguir entrar na universidade. Demorou um pouco, mas como desde cedo gostava de estudar e contou com a ajuda dos amigos, sua vitória acadêmica finalmente veio.

A universidade era aquele mundo fascinante de conhecimento e pessoas. Tudo muito dinâmico e interessante. Ele dedicou-se bastante, mesmo vivendo com poucos recursos. As boas notas o empolgavam ainda mais. Já quase não se lembrava mais de seu quintal, das frutas, da chuva.

Veio o primeiro amor e, logo depois, a primeira decepção. Foi difícil, mas superou também. A doença da mãe foi pior. Os dias de angústia marcavam suas emoções. Quando se viu diante de um grande desafio pessoal, teve medo, mas logo depois venceu o temor e também o desafio. Assim sua vida foi amadurecendo entre vitórias, derrotas, coragem e medo. Com o tempo percebeu uma coisa: sempre que estava em situações de crise, sua mente trazia à tona a memória do seu quintal, das frutas, da chuva. E isso dava a ele um tipo de paz, de calma.

20 anos depois, o menino, que já é adulto, acostumou-se com os prédios, o asfalto, as facilidades da cidade grande. Mas seu coração nunca deixou de visitar, vez ou outra, o quintal, as frutas, a chuva. Talvez não seja apenas isso; talvez seja aquela vida por trás do quintal, das frutas, da chuva. De qualquer forma, ele não se arrepende das escolhas, da vida escolhida, mas sabe que há um tesouro vivo cuidadosamente preservado por sua memória e resgatado pelas crises: o quintal, as frutas, a chuva.

O menino agora adulto ainda gosta de imaginar o futuro. E nele vê um mundo ideal, cheio de inovação tecnológica, de criatividade, de gente colocando em prática novas ideias para beneficiar o maior número de pessoas. Ele vê uma sociedade mais justa, menos desigual; vê casas coloridas e pontes bonitas. Vê sol, lua e estrelas. Um lugar em que todos podem desenvolver suas potencialidades, sem medo de preconceito ou injustiça. Um mundo onde a fé em Deus não é fuga, mas é plenitude.

De tudo o que o menino agora adulto sonha, no entanto, ele nunca deixará de imaginar aquele paraíso que deixou para trás e que representa todo o planeta. Afinal, que mundo de fato sobreviveria sem um quintal, as frutas e a chuva?

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Nota: Esta crônica é uma homenagem ao Dia Mundial do Meio Ambiente e ao trabalho do Renovar o Nosso Mundo

 


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Obrigado!

  1. Antonia Leonora van der Meer

    Que linda e emocionante crônica. Realmente o quintal, as frutas e a chuva são realidades preciosas que, infelzmente ficaram fora do alcance da maioria das pessoas. Cuidemos daquelas coisas simples e preciosas!

  2. Retratou minha vida. Meu quintal, minhas árvores, meu estilingue, o cheiro da terra e minhas cicatrizes na cabeça, pé, braço e pernas. Vivi o mundo corporativo das multinacionais. Vi a briga, a competição, a meritocracia. Sobrevivi. Estou bem. Onde moro hoje não tem quintal. Tem janelas e vizinhos que não vejo. Mas tenho vivo o meu quintal, minhas árvores e as ruas.

  3. Vinícius Bof Bufon

    Linda crônica. Viajei ao passado. Me percebi dentro de cada fase da história.
    Certamente passarei um bom tempo refletindo sobre realidades, sonhos e valores.
    Muito obrigado.

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