Trabalho – O que é isso?

Trabalho – O que é isso?

Texto Básico: Gênesis 3.19

Leitura Diária
Domingo: Ef 4.28 – Trabalhar fazendo o que é bom
Segunda: Dt 25.4 – O boi que debulha pode comer
Terça: 1Ts 4.9-12 – Trabalhar com as próprias mãos
Quarta: Gn 2.15-19 – O trabalho antes do pecado
Quinta: Sl 128.1-6 – Do trabalho comerás
Sexta: Pv 6.6-11 – O exemplo da formiga
Sábado: Pv 21.25 – O preguiçoso morre desejando

Introdução

Muitos cristãos fazem uma nítida separação entre sua vida espiritual ou religiosa e sua vida secular. Agindo assim, esses irmãos encontram muita dificuldade em perceber como sua fé deve se relacionar com todas as áreas da vida. Por exemplo, por imaginarem que o trabalho é uma atividade puramente secular, nem sempre enxergam com clareza as implicações de sua fé para o seu exercício profissional. Sabem que não devem trapacear, nem mentir no trabalho e até compartilham sua fé com algum amigo. No entanto, muito raramente, levam em consideração questões básicas, como: Minha fé afeta os produtos que faço? Meu compromisso com Cristo influencia a maneira como vendo os produtos que minha empresa comercializa? Minha participação na aliança da graça afeta a maneira como enxergo meu salário e meus lucros?

Neste trimestre, estudaremos o modo como nossa atividade profissional interage com nossa fé. O intuito é mostrar que o reino de Deus é muito mais amplo do que a igreja e todas as áreas da nossa vida, com todas as atividades que realizamos, quer elas sejam consideradas religiosas ou não, precisam ser feitas de modo agradável ao Senhor.

I. A visão grega do trabalho

O modo como os antigos gregos enxergavam a vida tem muita influência no mundo ocidental. O modo como interagiam com o mundo e a sociedade, por meio de sua filosofia, influenciou não apenas as cidades gregas, mas todo o Império Romano. Ainda hoje influencia muito a maneira como nossa sociedade interpreta a realidade. É por isso que é tão importante levarmos em consideração a opinião dos gregos antigos sobre o trabalho.

Para eles, o trabalho era algo muito ruim, um mal irremediável que devia ser evitado a todo custo. Eles acreditavam que o trabalho com as artes, o comércio ou a terra não tinham nobreza. Em linhas gerais, o trabalho servia apenas para roubar o tempo, que deveria ser aproveitado com amizades e prazeres. Segundo Hesíodo, o trabalho começou com Eris, a deusa da discórdia, e o labor veio da caixa de Pandora, como um castigo de Zeus. Cícero considerava o trabalho sem valor e sórdido.

Como conciliar essa visão sobre o trabalho com a necessidade de que o trabalho seja feito? Os gregos não eram contra o trabalho. Eles apenas não aceitavam que pessoas livres se dedicassem a ele. Não tinham nada contra o trabalho feito por animais ou pelos escravos. Segundo os gregos, os trabalhadores (escravos) vêm ao mundo, trabalham, reproduzem-se e morrem, sem deixar marcas de sua existência. Os homens livres, por sua vez, vêm ao mundo, ocupam-se da filosofia, da cidadania e da satisfação de suas necessidades e prazeres. No entanto, como temos um corpo e nossa vida está diretamente ligada a ele, precisamos cuidar dele, alimentá-lo e vesti-lo, até que seus dias cheguem ao fim. Os cuidados com o corpo geram trabalho. Os homens livres têm escravos que cuidam desse trabalho.

Percebe como essa visão grega sobre o trabalho, que existe há milhares de anos, continua viva? A opinião popular mostra que o trabalho é uma atividade árdua, realizada por pessoas que precisam trabalhar para sobreviver e, por isso, submetem-se às exigências de uma ocupação e de um chefe (aqui há o conceito de que trabalho é coisa de escravo). Além disso, o bom mesmo é poder se divertir sem ter que se preocupar com acordar cedo para trabalhar.

Mas será que é isso mesmo? O trabalho é apenas um mal inevitável? Um mal ao qual temos de nos submeter como escravos para ter o que comer e vestir? Sujeitamo-nos a ocupações próprias de animais simplesmente para abastecer nosso próprio “cocho”?

II. A visão medieval do trabalho

A Idade Média é outro período que tem grande influência sobre o modo como o trabalho é encarado. Esta influência é resultado do pensamento dos teólogos medievais que, normalmente, davam pouco valor ao trabalho.

Os cristãos medievais acreditavam que o trabalho era instrumentalmente bom. Em outras palavras, o trabalho era bom porque produzia bons resultados. Ele alimentava o corpo, humilhava a alma e agradava a Deus. Mas, para aqueles cristãos, o trabalho não tinha um valor intrínseco, isto é, o trabalho não tinha valor em si mesmo. Se a pessoa tinha com o que se sustentar, não precisava trabalhar. É claro que essa opinião sobre o trabalho era muito influenciada pela filosofia grega.

Mais uma vez, os cristãos tiveram dificuldade de enxergar a relação que seu trabalho tinha com sua fé, assim como acontece hoje. Alguns cristãos conseguem perceber a importância de não mentir no trabalho ou de cumprir as promessas feitas aos colegas de trabalho, ou mesmo de não trabalhar aos domingos, mas dificilmente percebem o que sua fé tem a ver com os produtos que fabricam ou vendem, ou com os serviços que prestam.

III. As visões renascentista e reformada do trabalho

Os cristãos do Renascimento tinham uma visão mais clara de Deus, e isso produziu neles uma visão mais clara do trabalho e da relação que ele tem com a fé cristã. Em vez de interpretarem Deus como um ser passivo e distante, que pouco ou nada tem que ver com o mundo criado, os cristãos do Renascimento chamavam Deus de artesão do universo.

Segundo eles, Deus demonstrou seu poder e sua sabedoria ao criar o universo. Como resultado dessa alta consideração que tinham por Deus, como artesão, esses cristãos passaram a dar mais valor à habilidade profissional, ao empenho, ao lucro e ao próprio trabalho. Giordano Bruno, por exemplo, pensava que o trabalho era bom porque fazia os homens desenvolverem suas capacidades criativas, que eventualmente os levaria a exercer controle sobre a terra e cumprir o mandato que Deus tinha dado a Adão na Criação.

O Renascimento negava que o trabalho fosse uma atividade própria dos animais, pois os animais trabalham sem pensamento ou variação, conforme padrões rígidos de comportamento instintivo, enquanto os homens usam a imaginação, planejando e executando suas ações. Eles criam, inovam, fabricam coisas a partir dos materiais da natureza. Assim, há um sentido em que o trabalho é um reflexo do fato de termos sido criados à imagem e semelhança de Deus.

A Reforma levou a afirmação do trabalho um passo mais à frente. Martinho Lutero declarou que o fazendeiro, removendo esterco, e a criada, tirando leite da vaca, agradam a Deus na mesma intensidade que o pastor que prega ou ora, se todos estiverem fazendo seu trabalho fielmente.

É Deus quem nos chama e nos capacita para exercermos nossa atividade profissional. Ao cumprirmos este chamado nos tornamos agentes do cuidado amoroso e providencial de Deus. Pelas mãos dos homens, enquanto eles trabalham, o Senhor responde às orações de seus filhos. À noite, oramos pelo nosso pão de cada dia, e os padeiros se levantam cedo para assá-lo. Oramos por segurança na viagem, e os mecânicos consertam os carros e os aviões. Quando desempenhamos nossas vocações fielmente, os nus são vestidos, os famintos são alimentados, os enfermos são curados, os ignorantes são educados.

Calvino e os puritanos concordam que os homens agradam a Deus quando se ocupam de vocações honestas. De fato, toda tarefa, mesmo as que são tidas em baixa estima pelas pessoas, é preciosa aos olhos de Deus, se for exercida para a glória do Senhor, que nos vocaciona e nos capacita para o trabalho.

Os cristãos só devem se ocupar de atividades lícitas. As atividades ilícitas não correspondem a nenhum chamado de Deus. Por exemplo, nenhum cristão é chamado por Deus para produzir ou distribuir produtos piratas ou para vender produtos sem nota fiscal, por exemplo. Há vários pecados envolvidos nesse tipo de atividade (fraude, mentira e roubo). No entanto, deve chamar nossa atenção o fato de que temos a exortação bíblica de trabalhar fazendo o que é bom (Ef 4.28). Isso envolve trabalhar em harmonia com as leis vigentes, dando a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.

Mas não basta trabalhar com aquilo que é lícito. Há atividades que são lícitas, mas não se harmonizam com a fé que professamos, como a produção e comercialização de tabaco, produtos de baixa qualidade e até pornografia.

As ideias dos reformadores permanecem centrais para um conceito cristão de trabalho. Ambos se recusaram a dividir a vida entre atividades seculares e atividades sacras. Ambos enfatizaram nossa habilidade de honrar a Deus em nossas tarefas diárias.

Existem diferenças entre Calvino e os outros reformadores. Lutero e a maioria dos puritanos acreditavam que estruturas sociais eram quase imutáveis. Eles incentivavam os homens a servir no lugar ou classe dado pelo costume social. Mas Calvino acrescentou que a sociedade como um todo pode ser reformada. Nós devemos tentar reformar estruturas sociais para promover justiça para a sociedade caída, e não apenas para indivíduos. Há reformas sociais importantes que precisam ser abraçadas e realizadas pelos cristãos, tais como: acesso à saúde e à educação e geração de emprego e renda para todos.

Os reformadores fizeram duas alegações cruciais. Primeiro, nenhum lugar de trabalho é absolutamente secular. Por mais degradado que um lugar possa ser, Deus o reivindica. Temos o dever de honrar nosso trabalho com um exercício profissional de boa qualidade. Segundo, Deus nos reforma por meio de nosso trabalho. Esses princípios nos capacitam a viver como seus filhos no local de trabalho e a exercer seu reinado ali. 

IV. A visão contemporânea do trabalho

O relato de Gênesis 2.15-19 mostra que Deus colocou o trabalho nos seus planos para o homem. Ainda antes que houvesse pecado, havia trabalho e ele era feito com alegria, como parte da vida. Portanto, temos motivos para olhar o trabalho com mais otimismo.

Algo que precisa ser levado em consideração no estudo deste trimestre é que, segundo o ponto de vista da sociedade moderna, pessoas que têm ocupações consideradas de maior status são mais bem vistas, enquanto pessoas que têm ocupações mais modestas são tratadas com descaso. O cristão não pode submeter-se a esta visão equivocada. O fato de muitas pessoas possuírem empregos modestos não as torna inferiores a ninguém. Deus não faz esse tipo de distinção. De modo nenhum ele trata com descaso os lavadores de louça ou as faxineiras que realizam as tarefas mais humildes. Deus não conhece nenhum sistema de castas e não nos separa por categorias de nenhuma espécie. Lembre-se de que entre os amigos de Jesus estavam pessoas humildes, como pescadores e pastores de ovelhas. Todo trabalho honesto possui valor perante Deus.

Outro elemento que precisa ser levado em conta quando apresentamos a visão contemporânea do trabalho é a fadiga a que os trabalhadores são submetidos por vários motivos. Um deles é a precariedade dos sistemas de transporte público (muitos trabalhadores passam horas, todos os dias, em ônibus e trens lotados). Outro é a opressão desumana que muitos sofrem no local de trabalho. Chega a causar arrepios o fato de haver no Brasil, ainda hoje, milhares de pessoas que trabalham em regime de escravidão. Além dos escravos modernos, há os trabalhadores que são diariamente oprimidos em seu local de trabalho por chefes autoritários, por terem de trabalhar em locais sem higiene ou pelas condições desumanas em que o trabalho é realizado.

Toda condição de trabalho que torne o labor opressivo deve ser condenada abertamente. A Escritura afirma que o trabalhador precisa ser tratado com dignidade. Em 1Timóteo 5.18, o apóstolo afirma que “o trabalhador é digno do seu salário”. No mesmo texto, ele repete o ensinamento de Deuteronômio 25.4 que diz: “Não amordaces o boi, quando pisa o trigo”. Ora, se Deus se preocupa em nos dar mandamentos que nos impeçam de sermos injustos até mesmo com os animais, com quanta dignidade devemos tratar os seres humanos que trabalham conosco ou para nós? O regime opressor a  que muitos trabalhadores são submetidos, e as precárias condições de trabalho existentes em muitas empresas, explicam por que tantas pessoas começam a sonhar com a aposentaria aos 40 anos de idade.

Consideremos, também, os trabalhos importantes que não geram rendimento. Por exemplo, o trabalho voluntário e o trabalho doméstico. Visto que trabalho é mais do que subsistência, muitas pessoas continuam trabalhando por prazer, até mesmo depois que se aposentam. Muitas trabalham em casa, fazendo pequenos trabalhos domésticos apenas para desenvolver suas habilidades manuais e sua capacidade criadora. Outras se dedicam às atividades domésticas. A maioria, por obrigação e sem prazer. A estes, é preciso dizer que esse trabalho é tão sublime e tão necessário quanto qualquer outro. Outros fazem isso por opção, por gostarem de ver a casa arrumada e cheirosa. A estes, é necessário dizer que os dons que Deus nos dá nem sempre têm o objetivo de nos proporcionar ganho financeiro, mas sempre têm o objetivo de nos levar a desempenhar tarefas importantes para nossa sociedade e para nossa família. O trabalho nos dá significado e direção, identidade e propósito. Pelo trabalho, ganhamos a satisfação de contribuir para algo maior do que nós mesmos.

Por fim, reconhecidamente muitos trabalham porque se conformam com os papéis que a sociedade impõe a eles. A sociedade premia os trabalhadores e pune os preguiçosos. Mas fazemos mais do que ganhar dinheiro e status social com nosso trabalho. O trabalho é afetado pela maldição a que está submetido pelo pecado e pela irritação de trabalharmos com outros pecadores, tão limitados e tão imperfeitos quanto nós mesmos. No entanto, ele ainda tem valor intrínseco, porque Deus trabalha e nos convoca para sermos seus companheiros de trabalho.

Nas próximas lições veremos que, para tirar o máximo proveito do trabalho, devemos descobrir nossos talentos e nossa vocação.

Conclusão

Os gregos e os pensadores da Idade Média tinham uma visão distorcida do trabalho que afeta o conceito de trabalho até os nossos dias. Com o Renascimento e a Reforma Protestante, esse conceito foi revisto, para se adequar ao que ensina a Escritura. Os cristãos da atualidade devem manter essa visão bíblica do trabalho e transmiti-la pelo ensino e testemunho pessoal.

Aplicação

Hoje vimos que nenhum trabalho é inteiramente secular. Como esta convicção afeta seu trabalho? O que a lição de hoje pode ajudá-lo a mudar em sua vida ou em seu exercício profissional? Você trabalha para a honra de Deus e seu reino enquanto aperta parafusos ou varre o chão da empresa?

>> Estudo publicado originalmente pela Editora Cultura Cristã, na série Nossa Fé, na revista Uma Visão Transformadora. Usado com permissão.

Leia mais
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2 Comentários para “Trabalho – O que é isso?”

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