Santo no mundo (em Cristo)

Santo no mundo (em Cristo)

Texto básico: Romanos 6

Leitura diária
D Mt 16.24-27 Tome sua cruz
S Cl 3.1-17 Ressuscitados com Cristo
T 1Pe 217-22 A libertinagem corrompe
Q Gl 2.15-21 Não vivo eu, mas Cristo
Q Rm 13.11-14 Andemos dignamente
S 1Pe 1.13-21 Sede santos
S Ef 4.17.5.2 Imitadores de Deus

Introdução

As descrições e exigências de santidade das Escrituras podem nos levar a pensar que o padrão de Deus é alto demais para nós. Afinal, quantas lágrimas já derramamos ao nos dar conta de que vivemos como se ainda estivéssemos mortos em nossos pecados?

Ao chegarmos em Romanos 6, Paulo já descreveu a miséria espiritual da humanidade, já expôs a justificação gratuita provida por Cristo e os seus resultados gloriosos. As perguntas que surgem diante da obra maravilhosa de Cristo a nosso favor são: Como poderemos viver à altura dessa salvação? Será que a tarefa é grande demais para nós? Por outro lado, essa graça não nos empurra para uma vida de mais pecados ainda? Paulo não foge a essas questões, mas apresenta a obra de Cristo como suficiente para nós.

I. Crucificados com Cristo

“Permaneceremos no pecado?” Paulo responde firme e negativamente (Rm 6.1). Ele não se coloca como um super-homem espiritual, apontando nossas falhas, mas identifica-se com nossa luta. A questão é crucial. Se estávamos mortos, e por meio do sacrifício de Cristo fomos declarados justos diante de Deus, agora devíamos estar vivos no Reino do Filho e mortos para o pecado. Infelizmente, porém, muitas vezes vivemos como se ainda estivéssemos mortos para Cristo e vivos para o pecado.

Paulo estava prevendo que os críticos do evangelho da graça fariam a objeção de que se o perdão vem de graça (sem obras) ao pecador, então seria lógico viver pecando mais ainda. É como se a justificação pela graça premiasse o pecado! A resposta vem por meio de outra pergunta: “Como viveremos ainda no pecado, nós os que para ele morremos?” (v.2). Uma conversão verdadeira significa morte verdadeira – morte para o pecado. Na verdade Paulo nos dá até mesmo a data dessa morte: ao sermos “batizados em Cristo Jesus” (v.3). Mas, depois de discorrer por cinco capítulos sobre a justificação pela fé somente, o apóstolo não está mudando sua tese para “salvação pelo batismo”; acontece que, nos tempos apostólicos, conforme vemos em Atos (2.41; 8.38; 10.48, por ex.), o batismo seguia a confissão de fé em Cristo quase que imediatamente, tornando-se experiências não muito distintas. Aqui, Paulo fala do batismo como símbolo ou marco da união do crente com seu Salvador. Simboliza e sela visivelmente a purificação dos pecados e o recebimento do Espírito Santo pelo crente (1Co 12.13). A ideia é que nós devemos nos lembrar de que a vida cristã é uma vida de identificação com a morte de Cristo.

No momento em que aceitamos Cristo como nosso Salvador somos justificados perante Deus, e nossa culpa se vai; mas ainda precisamos lidar com esta vida presente, com nossos desejos e tentações. A chave é não esquecermos que passamos pela morte de Cristo: “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me” (Mt 16.24). Ser discípulo de Cristo é ter sua velha natureza morta para o pecado, por isso, o cristão não deseja “permanecer” nem “viver” no pecado.

Entretanto, devemos esclarecer que não cabe aqui o conceito antibíblico ensinado por alguns de que o cristão está morto no sentido de que já é imune à tentação e ao pecado. Esse erro tem levado muitos crentes sinceros ao autoengano e ao desespero. Em primeiro lugar, note que nosso texto utiliza a mesma expressão “morrer para o pecado” tanto para nós quanto para Cristo, e como é óbvio que Cristo nunca esteve receptivo ao pecado, nem se livrou de sua influência apenas na sua morte, não pode ser esse o sentido em relação a nós também. E, segundo, tanto as biografias dos santos da Bíblia quanto a nossa experiência cristã demonstram claramente que nossa natureza carnal fica ainda ativa após a conversão. De qualquer forma o restante da epístola confirma isto, pois Paulo passa a admoestar os irmãos de Roma a deixarem as obras das trevas (Rm 13.11-14).

Devemos buscar o verdadeiro significado dessa morte com Cristo na declaração de que a morte é o salário do pecado (Rm 6.23; 1.32). Cristo morreu como castigo pelo pecado; carregou nossos pecados e sua justa consequência sobre si. Já sofreu de uma vez por todas a pena pelos nossos pecados, portanto o pecado já não tem direito ou poder sobre ele – e nem sobre nós, os que se unem por meio da fé à sua morte sacrificial (v.7). Mortos para o pecado porque em Cristo já sofremos o castigo devido ao pecado, e ele já não tem direito sobre nós.¹ É assim que podemos viver.

II. Ressuscitados com Cristo

Se nós fomos unidos a Cristo na semelhança de sua morte, algum dia seremos também ressuscitados com ele. Porém isso não é algo apenas para o futuro, mas tem significado no presente: “andemos nós em novidade de vida” (Rm 6.4). A ênfase de Paulo é que não precisamos esperar o futuro, mesmo na vida presente podemos experimentar a realidade de que não somos mais escravos do pecado (v.6), pois ele foi destituído completamente de poder (este é o significado de “destruído”).

É maravilhoso sabermos que, tendo aceitado Cristo como nosso Salvador, nós, da mesma forma que ele, seremos fisicamente ressuscitados da morte; mas o ponto aqui é que há um significado dessa ressurreição que é válido para nossa vida atual. É como se ele dissesse: “Cristo morreu e ressuscitou no passado; pela fé nós já morremos com ele e ressuscitaremos como ele – agora viva de acordo com isso!” Nosso chamado é para vivermos no presente como se já estivéssemos no futuro. Eis aí o chamado cristão, esplêndido e real ao mesmo tempo. Assim como Cristo não morreu por morrer simplesmente, nossa vocação também não é puramente negativa – morrer para o pecado –, mas extremamente positiva, pois estamos vivos para Deus. A vida cristã não é um mero estilo de vida mais tristonho, cheio de privações e sacrifícios. Certamente estão envolvidos aspectos negativos e de sacrifício, mas são determinados pelo ponto essencial e positivo de viver para Deus.

A vida cristã não pode ser medida pelo número de programações, o tempo de conversão ou o número de cargos na igreja. Para estarmos vivos para Deus temos de ressuscitar de uma morte continuamente. Devemos morrer para a autossuficiência, para o egoísmo, para o egocentrismo. Estar vivo para Deus é essencial, e para isso, deve haver morte. Não há outro caminho. Em nosso cotidiano, devemos experimentar tanto a morte para o pecado quanto o viver para Deus.

Entretanto, em lugar algum da Bíblia se diz que alguém seja capaz de viver de forma perfeita nesta vida; por outro lado, também não há a sugestão de que nós possamos nos manter amarrados às cadeias de nosso passado pecaminoso. Há um poder que quebra essas cadeias, mas ele não vem de nós; é o poder do sangue derramado por Jesus, que morreu, sim, mas ressuscitou e está vivo. É por meio de sua obra consumada na cruz que essa vida é possível. “Vivos para Deus em Cristo Jesus”, Paulo diz (Rm 6.11,23). É em Cristo que viveremos. Isso significa dizer que a obra de Cristo não inclui apenas o preço do nosso pecado, mas igualmente o poder de ressurreição para a nossa vida.

Esses são fatos consumados, baseados na obra efetiva de Cristo, não são fruto de nossa imaginação. Entretanto, Paulo nos convoca a “considerar” este fato; nossa mente tem um papel importante aqui: em oposição a “ignorais” (v.3), ele contrapõe três vezes “saber” (vs. 6,9,16). Não se trata de fantasia, mas de fé em fatos reais ocorridos no passado, na obra consumada de Cristo, e por ser essa uma obra digna de crédito, “cremos que com ele viveremos” (v.8). Nossa mente deve compenetrar-se de tal modo na morte e ressurreição de Cristo e nas suas consequências para nós a partir de nosso batismo nele, que vivermos em pecado será uma alternativa absurda e descartada enfaticamente.

Isso não é uma abstração nem uma espiritualização da vida, mas Paulo está nos dizendo exatamente os meios pelos quais essa realidade passa a ser concreta em nossa vida. Repetindo: Paulo não fantasiando a vida cristã, dizendo que você será perfeito daqui para frente; mas há uma enorme diferença entre não conseguir ser perfeito e ser escravo do pecado, deixá-lo reinar e dominar (Rm 6.6,12,14,16). A obra de Cristo é a base sobre a qual nossa mente pode construir novos pensamentos, novos valores e novas atitudes (Rm 12.2; Ef 4.23,24).

III. Libertos em Cristo

Inúmeras coisas que realizamos parecem ser moralmente neutras; mas, na maior parte das escolhas que fazemos estamos nos oferecendo como instrumentos, ou do diabo pela injustiça e desobediência, ou de Deus pela justiça e obediência (Rm 6.13). Nessa primeira imagem, Paulo nos vê como instrumentos, armas ou ferramentas a serviço de quem as manuseia. Através de nossos atos nós podemos realizar as obras de Satanás, agindo com a mentira, o ódio, a injustiça, e todas as obras da carne listadas pelo mesmo Paulo em outra carta (Gl 5.19-21; confira com Jesus chamando os fariseus de filhos do diabo, Jo 8.44). Mas a partir do momento da conversão somos feitos ferramentas de um novo dono, estamos debaixo da dominação da graça, e devemos ser instrumentos que produzem justiça (Gl 5.22,23).

Porém, a partir do verso 15 ele completa a mesma ideia ao fazer uso de uma analogia com o mercado de escravos, bem conhecido daqueles crentes em Roma. Um escravo não tem projetos próprios nem persegue seus próprios objetivos e desejos, pois não tem autoridade sobre si mesmo; está obrigado a obedecer seu amo, seu dono. Mas o apóstolo afirma que há um ponto no qual o dono perde toda a autoridade sobre seu escravo: a morte. Pois essa é a situação exata do cristão, que era escravo do pecado e não tinha forças para fazer outra coisa senão obedecer a ele; mas agora, pela fé, o escravo foi unido a Cristo em sua morte, e saiu de debaixo do domínio e da autoridade do pecado. Mas a operação é completa, pois não somente fomos libertos do pecado e colocados numa posição de neutralidade, numa liberdade vazia de significado – pelo contrário, fomos feitos “servos da justiça” (v.18).

É muito importante termos isto em mente – não existe uma tal liberdade absoluta para seres humanos. Somente Deus tem liberdade absoluta, pois nenhum de seus atos experimenta contingência externa. Vamos explicar melhor isto: Quando Deus decide fazer algo, não há nenhuma limitação ao seu poder, nada que o impeça de realizar o que planejou (Jo 42.2). Nenhuma criatura finita de Deus pode viver à parte de seu Criador, pois dele derivamos não só nossa origem, mas nossa própria subsistência, ou seja, nossa permanência como seres que existem. Isto significa que o ateísmo é uma piada ridícula e de mau gosto. Mas também significa que temos de escolher, como seres morais e racionais, se desejamos viver na contramão do universo, em rebelião contra o Criador e escravizados ao pecado; ou como escravos voluntários de Deus, libertos das amarras do pecado e servindo por amor ao Criador. Não há meio-termo quanto a isso; não há um lugar em cima do muro onde possamos ficar neutros, nem servos do pecado nem de Deus, como senhores de nós mesmos. O só cogitar tal situação já é pecado grave de um coração abertamente rebelde. Nossa liberdade é vivida quando nos apresentamos a Deus, oferecendo-nos como “servos para obediência” e nossos membros “para servirem à justiça para santificação” (Rm 6.16,19).

III. Vida em Cristo

Apesar de fundamentada na obra eterna de Cristo, essa mudança de senhorio acontece pela verdade do evangelho (Rm 6.17). Jesus declarava ser ele mesmo a verdade, e que o conhecimento da verdade libertaria os homens (Jo 8.32; 14.6). Entretanto, em nosso mundo a ideia de uma verdade absoluta é rejeitada completamente, pois a filosofia que reina na sociedade afirma que cada pessoa deve encontrar sua própria verdade, que cada um tem a sua, e que não há uma verdade absoluta.

Essa mentira se reflete no pensamento geral de que toda religião é válida; mesmo dentro das igrejas muitos entendem que a doutrina bíblica é somente para pastores e seminaristas, que é uma questão secundária, ou até mesmo que é um impedimento para a verdadeira espiritualidade. Porém, devemos insistir junto com Paulo em que os crentes são libertos da escravidão do pecado ao “obedecer de coração à forma de doutrina a que fostes entregues” (Rm 6.17). O conteúdo do evangelho é a verdade sobre Deus expressa em palavras humanamente compreensíveis, e a salvação envolve obediência a essa verdade pela fé. É essa obediência à verdade nos torna livres da servidão ao engano do pecado, portanto somente somos realmente libertos do reino do pecado e da morte quando nos colocamos realmente debaixo da servidão à verdade, ao evangelho, a Deus (v.18).

A conversão cristã não pode ser resumida à prática de atividades eclesiásticas, ou ao uso de algum talento pessoal – como falar em público ou cantar. A Escritura declara enfaticamente que se trata de uma mudança radical, do domínio do pecado para a servidão à justiça. Quando chegamos a esse entendimento da vida cristã, não só estaremos nos alegrando mais profundamente no Senhor, como estaremos encontrando muito maior alegria em todos os nossos relacionamentos humanos. Em algum momento futuro, na ressurreição, o relacionamento dos homens com Deus, com outros homens e com a natureza serão completamente restaurados e aperfeiçoados; contudo, por meio da fé, podemos desfrutar dessa cura em alguma medida já nesta vida. Para isto, devemos nos oferecer à justiça “para a santificação” (v.19).

A santificação é o que poderíamos chamar de “lado consciente” da nossa fé. Certamente é uma obra do Espírito Santo em nós, mas também é um mandamento, uma oferta, um privilégio e a maior vocação cristã (Rm 8.11; 12.1,2; Ef 4.22-24; 1Pe 1.15,16). Ela é descrita como um processo de crescente obediência que perdura a vida toda do crente, sem nunca alcançar nesta vida a perfeição.

Paulo novamente traça um contraste entre o estado anterior e o atual: os resultados colhidos na injustiça, isto é, durante a escravidão ao pecado, foram apenas coisas vergonhosas e morte. Em outras palavras, antes da conversão até podíamos nos considerar livres e independentes, mas na realidade apenas gerávamos injustiça e esperávamos a morte; isso nos afetava e aos nossos semelhantes. Não havia alternativa, pois a morte é a consequência, o resultado, “o salário” devido ao pecado (6.23).

Em contraposição a esse quadro sombrio de escravidão e morte, o apóstolo agora apresenta a realidade de libertação do pecado e servidão a Deus que caracteriza o cristão verdadeiro, e seus resultados maravilhosos: “a santificação e, por fim, a vida eterna” (v.22). À medida que nos oferecemos à “obediência para justiça”, ou como “instrumentos da justiça”, atendemos ao nosso chamado para sermos cooperadores com Deus e seu Reino. E assim descobriremos que é possível viver uma vida verdadeiramente cristã aqui, antecipando a perfeita semelhança com Cristo que teremos na eternidade de glória prometida.

Conclusão

A vida cristã é uma obra da graça. Mas de modo algum permite uma vida de licenciosidade, pois isso seria negar o próprio fundamento da vida cristã: a união com Cristo em sua morte e ressurreição. Quem foi liberto do pecado é feito automaticamente servo da justiça e deve viver de acordo com esta realidade – somos novas criaturas.

Essa nova realidade deve ser experimentada diariamente pelo oferecimento voluntário e amoroso de nossa vida ao nosso Salvador. Em vez de desejarmos as mesmas coisas que nos escravizavam anteriormente ao pecado, buscaremos a santificação, a vida e a eternidade. Essa é uma vida cristã gloriosa, alegre e compromissada com Deus, conferida a nós por meio da obra consumada de Cristo.

Aplicação

Você já se viu tentado a abusar da graça, convivendo com o pecado como coisa natural? Avalie-se diante de Deus com urgência, e se arrependa.


Nota
[1] John Stott, A Mensagem de Romanos 5-8. São Paulo: ABU, 1988, p. 35.

> Autor do Estudo: Alceu Lourenço

>> Estudo publicado originalmente na revista Palavra Viva – Sangue na porta, da Editora Cultura Cristã. Adaptado do livro A obra consumada de Cristo, de Francis A. Schaeffer. Usado com permissão.

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Um comentário para “Santo no mundo (em Cristo)”

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