Teologia da Prosperidade — satisfação cristã versus hedonismo

TEOLOGIA DA PROSPERIDADE
satisfação cristã versus hedonismo

Texto básico: Jó 1.1-22

Leitura Diária
Domingo  –   Hb 11.1-22 – A fé como certeza absoluta
Segunda  –  Hb 11.23-40 – A fé como experiência vital
Terça  –  Tg 1.2-4 – Por que provações?
Quarta  –  Gn 45.1-28 – O prazer na soberania de Deus
Quinta  –  Sl 23.1-6 – No vale da sombra da morte
Sexta  –  Sl 91.1-16 – No esconderijo do Altíssimo
Sábado Cl 3.1-17 – Pensando lá no alto

 

Introdução

A palavra hedonismo vem do grego hedoné, que significa “prazer”, “vontade”. Ela nasceu na Grécia antiga e preconizava a busca pela felicidade por meio do prazer individual e egoísta. Adquiriu algumas formas, como o epicurismo, o psicologismo de Bentham, o homem dionisíaco nietzscheano e o materialismo contemporâneo.

O ser humano, em todas as épocas, aplicou conceitos distintos à felicidade e ao prazer. “O importante é ser feliz”; “Não importa o preço a pagar, o importante é que o prazer seja satisfeito”, dizem. Deste modo, ao longo da História, inúmeras variações foram usadas pelo ser humano para a busca do prazer: o erotismo, a ética, as lutas políticas, as guerras religiosas, etc.

Em nosso mundo contemporâneo, o materialismo é um dos prazeres mais evidentes em suas formas de consumismo e de fé. Após a grande virada filosófica e religiosa no final do século 19 e início do século 20, com as propostas de racionalização, desumanização e da “morte de Deus”(1), o mundo se tornou muito mais apaixonado por aquilo que é material em detrimento das coisas que não podem ser vistas.

A consequência desse processo de racionalização foi que as pessoas passaram a considerar como mais importante aquilo que pode ser demonstrado racional e concretamente, em detrimento dos valores e dos conceitos metafísicos construídos ao longo do tempo, quer pela teologia quer pela ética social.

Com essa mentalidade racional, a existência humana passou a ser julgada a partir de sua própria utilidade na sociedade, e não mais por sua natureza e essência, gerando, por consequência, a necessidade de possuir e de valorizar as coisas em vez das pessoas. Estas passaram a ser degraus para se conquistar aquelas.

No campo religioso, a fé que, de acordo com as Escrituras, é “a certeza das coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não veem” (Hb 11.1), transformou-se em uma espécie de muleta para escorar as necessidades existenciais das pessoas. Fé, no contexto religioso contemporâneo, é apenas um sentimento subjetivo que deve ser confirmado com realizações factuais e concretas no diaadia, sob pena de receber a desconfiança total daqueles que a sugerem.

Em outras palavras, a validade da fé depende do quanto ela é demonstrada objetivamente por meio de “bênçãos” materiais, concretas e numeráveis. Uma consequência da racionalização e da desumanização. Portanto, as necessidades humanas, quer sejam religiosas ou não, passam pela questão do “quanto se tem”, e não do “o que se é”. A essência foi trocada pela existência.(2)
A questão é que “só podemos ver com nossos próprios olhos” (F. Nietzsche). O perspectivismo de Nietzsche tem toda razão neste caso. De fato, a relativização dos valores nos conduz à perda de sentido geral das coisas, de modo que nossas necessidades mais próximas são as mais importantes naquele momento. Não conseguimos olhar adiante, porque o que está adiante de nós é apenas a necessidade imediata.

I. O que nos diz a Bíblia?

Primeiramente é preciso dizer que o prazer não é pecaminoso. Deus criou o homem para se deleitar nas coisas criadas e para experimentar as bênçãos que ele nos dá: “Porque Deus dá sabedoria, conhecimento e prazer ao homem que lhe agrada…” (Ec 2.26).

Vários textos bíblicos mostram o quanto é perigoso ampararmos nossa fé nas cirscuntâncias temporais. Entretanto, veremos no livro de Jó algumas preciosas verdades que nos guiarão pelo modo como devemos encarar as relações entre as prazeres momentâneos e as realidades factuais da fé.

O livro de Jó ensina algo importante sobre o modo comodevemos lidar com a questão das materialidades, da fé e do consequente sofrimento que advém dessa relação entre o ter e o ser. Jó era um homem rico (1.3) e, ao mesmo tempo, temente a Deus (1.1,8; 2.3; 42.7-8). Pela informação que temos, especialmente nos capítulos 29–31 de Jó, vemos que ele era um homem cujo padrão ético era respeitado pelos de sua época. Parece que Jó lidava muito bem com a relação ter e ser.

Entretanto, algo terrível aconteceu a Jó: ele perdeu os seus bens e seus filhos. Em uma sucessão de quatro eventos catastróficos, ele foi reduzido a pó. Sofreu ataques humanos – por meio dos sabeus e dos caldeus – e também naturais, como um incêndio e um vendaval. De fato, Deus havia permitido que Satanás afligisse Jó, considerando que ele não negasse sua fé no verdadeiro Senhor, dono e sustentador de todas as coisas. Jó estava entre o materialismo e a fé no verdadeiro governador do mundo. Ele estava entre o hedonismo secular e a sasifação em Deus.

O auge dessa imensa confiança e fé real em Deus se demonstrou no contraste entre a perda do material – que abalou não somente as posses físicas de Jó, mas também sua afetividade na paternidade –, e a realidade de sua experiência com Deus. Em um curtíssimo trecho, toda a vida de Jó é posta abaixo, como num grande terremoto que abala as mais firmes estruturas e transforma tudo em ruínas. Ao se ver totalmente desnudado da materialidade, Jó se reconheceu como nada e, rasgando as vestes, talvez única coisa que restava a ele, prostrando-se, adorou ao Senhor e disse: “Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei; o Senhor o deu e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor”.

Diante do contraste que o mundo contemporâneo nos impõe, entre o ser feliz neste mundo ou ser feliz pela felicidade em Deus, é possível extrairmos importantes lições para o nosso tempo dessa passagem de Jó.

II. Deus nem sempre nos livra de sofrimentos e desastres

Em primeiro lugar, é preciso aprendermos que Deus nem sempre nos livra de sofrimentos e desastres. Se o nosso prazer estiver colocado numa relação de satisfação com as cirscuntâncias sazonais, estamos totalmente errados e desfocados em nossa relação com Deus.

Há uma pregação contemporânea que  erroneamente tenta ensinar que qualquer tipo de problema na vida é sinal de falta de fé e de ausência de Deus. É impossível sustentarmos essa tese quando olhamos a vida de Jó. A Bíblia nos diz que ele era “íntegro e reto, temente a Deus e que se desviava do mal” (Jó 1.1). Jó tinha certezas teológicas inabaláveis: “Porque eu sei que o meu Redentor vive e por fim se levantará sobre a terra. Depois, revestido este meu corpo da minha pele, em minha carne verei a Deus. Vê-lo-ei por mim mesmo, os meus olhos o verão, e não outros; de saudade me desfalece o coração dentro em mim” (Jó 19.25-27).

Apesar dessa vida exemplar, Deus permitiu que Jó sofresse. “Perguntou o Senhor a Satanás: Observaste o meu servo Jó? Porque ninguém há na terra semelhante a ele, homem íntegro e reto, temente a Deus e que se desvia do mal. Ele conserva a sua integridade, embora me incitasses contra ele, para o consumir sem causa” (2.3). Observa-se que, aparentemente, não há razão alguma para que Deus permitisse a Satanás tentar a Jó. Mas somente no último capítulo do livro encontramos uma razão sublime: “Na verdade, falei do que não entendia; coisas maravilhosas demais para mim, coisas que eu não conhecia… Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te veem” (42.3,5). Deus havia preparado uma escola de fé para Jó. Essa era a razão de seu sofrimento.

Deus permite que soframos, pela fé. Em Hebreus 11, por exemplo, vemos vários servos do Senhor que sofreram, morreram, pela fé. O texto diz que, “por meio da fé, passaram pela prova de escárnios e açoites, sim, até de algemas e prisões. Foram apedrejados, provados, serrados pelo meio, mortos a fio de espada; andaram peregrinos, vestidos de peles de ovelhas e de cabras, necessitados, afligidos, maltratados…” (Hb 11.36-37). Tudo isso pela fé! Portanto, é preciso que saibamos que Deus permite que passemos por sofrimentos. Isto não é exclusividade de quem não tem fé. Mesmo aqueles que são retos diante do Senhor passam por provas, às vezes supreendentes e terríveis, como foi com Jó.

Vemos, então, a loucura da teologia da prosperidade, que deseja colocar sobre as pessoas o peso de que, se elas sofrem, é em razão de sua falta de fé. Absolutamente errado! A provação e as privações nos fazem mais fortes, porque nos fazem crer inteiramente em Deus, sustentador de todas as coisas, soberano em sua vontade e ações.”Meus irmãos, tende por motivo de toda alegria o passardes por várias provações, sabendo que a provação da vossa fé, uma vez confirmada, produz perseverança. Ora a perseverança deve ter ação completa, para que sejais perfeitos e íntegros, em nada deficientes” (Tg 1.2-4).

III. Deus nem sempre nos avisa quando virá o infortúnio

Em segundo lugar, é preciso observar que os eventos aconteceram de repente, pegando Jó desprevenido. Nem sempre há sinais claros da vontade de Deus de que passaremos por esta ou aquela situação. Os teólogos da prosperidade insistem no fato de que problemas pontuais são gerados por outra série de situações. Por exemplo, você está doente porque não tem dado o dízimo; você está com problemas financeiros porque não deu o salto de fé de entregar todos os seus recursos a Deus, etc.

Mas, quando olhamos para Jó, vemos que ele não fazia ideia do que estava acontecendo e da razão de tamanha perda. Ele se reconhecia reto diante do Senhor, íntegro; mas, de repente, todos aqueles desastres vieram sobre ele, seus bens e sua família. Por quê? Na verdade, ele não sabia, mas Deus havia ordenado tudo como um grande teste de fé e de confiança que Jó demonstraria no decorrer da situação.

Embora não saibamos os propósitos de Deus para nós, devemos ter a certeza de que ele já predestinou todas as coisas que acontecem. Jó não sabia o que haveria de acontecer, mas tinha plena convicção de que Deus estava no controle: “O Senhor o deu, o Senhor o tomou” (1.21).

Assim, em nosso mundo de incertezas, cujos ataques à nossa fé são constantes e as dúvidas teimam em fazer parte de nosso cotidiano, é preciso que reafirmemos, como Jó, a certeza de que Deus controla o nosso destino. “As tuas mãos dirigem meu destino, acasos para mim não haverá”, como escreveu Sarah Poulton Kalley num de seus belos hinos.

IV. Deus nos dá a verdadeira satisfação quando estamos nele

Posses materiais, família, igreja, etc., são presentes de Deus e, por isso, devem ser recebidos com louvor por nós. Em todoas as dádivas que o Senhor nos concede, sem exceção, existem alguns valores mais preciosos do que outros, e é preciso que entendamos e vivenciemos isto na realidade. Jó entendeu isto perfeitamente. A teologia da prosperidade insiste que creiamos naquilo que estamos vendo: dinheiro aumentando na conta, muletas sendo jogadas fora, cadeiras de roda voando, laudos médicos modificados, etc.

Embora, para Jó, fosse muito importante ter casas, campos, filhos (ele não desprezava tais bênçãos), era ainda para ele mais importante ter o Senhor como sustentador da vida. A fé não poderia ser abalada pelas circunstãncias. É preciso aprender a dar importância aos valores mais preciosos. O Senhor Jesus mesmo ensinou que se alguém descobrir um tesouro num campo, deve vender tudo o que tem para adquiri-lo. E também afirmou que “a vida de um homem não consiste na abundância de bens que ele possui” (Lc 12.15). De fato, é isso: há valores muito mais preciosos que outros e devem ser cultivados. Por isso, Jesus instruiu: “fazei para vós outros bolsas que não desgastem, tesouro inextinguível nos céus…” (Lc 12.33).

É preciso que depositemos nossa vida em Deus e vivamos neste mundo com frugalidade, sem colocar nosso coração nas coisas materiais, ainda que reconhecendo que são todas bênçãos de Deus para que vivamos satisfeitos nele.

V. O prazer final de todo homem é glorificar a Deus e experimentá-lo para sempre

Ainda uma quarta lição podemos extrair: se todas as bênçãos são provenientes do Senhor e se nossa suficiência é inteiramente nele, ele deve ser o alvo final de nosso louvor e nossa adoração. O culto verdadeiro é aquele que é prestado a Deus e somente a ele, com a demonstração de nossa dependência total dele. Nada levaremos deste mundo, por isso devemos nos subsistir no Senhor.

O famoso hino de Martinho Lutero afirma: “Se temos de perder família, bens, prazer, se tudo se acabar e a morte enfim chegar, com ele reinaremos”. O salmo 103.1 declara: “Bendize, ó minha alma, ao Senhor, e tudo o que há em mim bendiga ao seu santo nome”. Nossa suficiência está no Senhor e, portanto, todaa nossa satisfação e todo prazer (2Co 3.5; 9.8).

É sobre isso que lemos na resposta à pergunta número um do Catecismo Maior de Westminster: “O fim supremo e principal do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre”. Nossa vida deve ser inteiramente de culto. Não somente quando as coisas estão bem, mas sempre, mesmo nos desastres, como fez Jó. Ele não cultuava a Deus apenas na teoria, como um legalista, mas de fato e de verdade, como um verdadeiro crente. Precisamos aprender a cultuar a Deus sempre. Diante das mais profundas adversidades, nas incertezas do futuro, e no cenário tenebroso que se nos apresenta às vezes, lembrarmos de que o culto a Deus precede a todas as demais circunstâncias.

Conclusão

Deste modo, diante de um mundo materialista, focado nos resultados e nas estatísticas, racionalizado e desumanizado, voltado apenas para as posses materiais e para os valores concretos, para uma fé capenga que se escora no que é mensurável apenas, é preciso nos lembrar da experiência vivida por Jó. Após perder os seus bens, sua família e sua própria existência prática, ele descansou os seus pés no Senhor, fundamento da sua vida. Deus não nos livra do sofrimento. Ele pode vir e pode estar bem perto, mas certamente Deus nos mantém firmes com a fé inabalável, na certeza absoluta de que, nele, “somos mais do que vencedores”.

Aplicação

Você poderia fazer um teste: tente elaborar uma lista de coisas que são realmente valiosas para você. Pense no modo como você se comportaria caso perdesse algumas destas coisas. Discuta com seus colegas de classe sobre esta relação de ganhar e perder, e estabeleça critérios para julgar os bens que realmente interessam ao cristão.

>> Estudo publicado originalmente pela Editora Cultura Cristã, na série Expressão, 2013. Usado com permissão.

(1). Tais como as defendidas pelo Positivismo Clássico de Augusto Comte, e levadas a rigor em suas formas antimetafísicas por Sigmund Freud, Friedrich Nietzsche, dentre outros.
(2). É um tipo de humanismo existencialista prático, conforme defendido pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre, em seu livreto O Humanismo é um existencialismo

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3 Comentários para “Teologia da Prosperidade — satisfação cristã versus hedonismo”

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