JUSTIFICAÇÃO — o ponto de partida da Reforma

JUSTIFICAÇÃO  — O PONTO DE PARTIDA DA REFORMA

 

 

Texto básico: Romanos 5.1-10

Leitura diária
D  –  Rm 4.1-15 Abraão justificado pela fé
S  –   Rm 8.31-39 A segurança do redimido
T  –   Rm 3.21-31 Justificação pela fé
Q  –   Gl 2.11-21 Justificação mediante a fé
Q  –  Fp 3.2-11 A justiça mediante a fé
S  –   Tg 2.14-26 Fé e obras
S  –   2Co 5.18-21 Fomos feitos justiça de Deus

 

Introdução

Dia 31 de outubro comemoramos o Dia da Reforma. A importância da Reforma Pro­testante não está exatamente na criação de novas denominações cristãs, mas no resgate da doutrina bíblica, da justificação pela fé. Alavancados pelo claro ensino bíblico de que a justificação não é pelas obras, mas pela fé, os reformadores apontaram para Cristo como Autor e Consumador da fé.

Embora esta doutrina bíblica tenha sido tão importante na história da igreja cristã, muitos cristãos ainda não a entendem com clareza. Você sabe o que diz a doutrina da justificação pela fé? Sabe em que consiste a justificação? E o que Cristo tem a ver com isso? Isso é o que veremos na lição de hoje.

I. Natureza e características da justificação

A justificação é um tema muito abordado em sermões e estudos, mas nem todos os crentes têm uma ideia muito clara de o que ela real­mente é. Podemos definir a justificação como um ato judicial de Deus, no qual ele declara, com base na justiça de Jesus Cristo, que todas as reivindicações da lei são satisfeitas com vistas ao pecador. A justificação envolve o perdão de pecados e a restauração do pecador ao favor divino. O pecador justificado recebe o perdão de pecados e tem paz com Deus (Rm 5.1), se­gurança da salvação (Rm 5.1-10) e herança com os que são santificados (At 26.18).

O que está em jogo é a questão de nosso estado diante de Deus em termos de sua lei. Pelo seu pecado, Adão mergulhou a raça hu­mana em culpa. Nós infringimos a lei justa e santa de Deus e somos culpados diante dele. A penalidade é a morte. Paulo deixa isso claro em Romanos 5.12-21, onde ele traça os efei­tos do ato único de desobediência de Adão, mostrando que tal ato resultou na condenação e morte para todos. Em outras palavras, a jus­tificação traz em perspectiva a possibilidade da absolvição da culpa, por sermos declarados justos e então recebermos a vida.

A justificação está claramente associada à expiação. Talvez a demonstração mais clara da conexão entre expiação e justificação seja aquela feita por Paulo em Romanos 4.25. Cristo “…foi entregue por causa das nossas transgressões e ressuscitou por causa da nossa justificação”. Aqui, como sempre, a morte e ressurreição de Cristo são vistas por Paulo em uma unidade ininterrupta. Por esta razão, a morte expiatória de Cristo assegura uma parte de nossa justifica­ção, ou seja, aquela que diz respeito ao perdão, enquanto sua ressurreição obtém para nós o outro elemento, o da justiça. Como morte e ressurreição permanecem juntas como aspectos gêmeos da realização central de Cristo, o mes­mo acontece com a expiação e a justificação. A morte na cruz não foi o final para Jesus. Sua morte foi o cumprimento de uma importante etapa de sua obra, que teve continuidade em sua ressurreição, ascensão, sessão à destra do Pai e em sua obra permanente como Profeta, Sacerdote e Rei. Por sua vez, foi a ressurreição que deu significado à morte e lançou luz para os discípulos sobre tudo o que havia ocorrido anteriormente. Foi sua ressurreição que deixou claro para os discípulos e para todos aqueles que o viram pregado na cruz que ele realmente era quem dizia ser: o Messias prometido. Além do mais, a própria ideia da ressurreição exige a morte primeiro, ou isso não é ressurreição. Da mesma forma como morte e ressurreição são inseparáveis e mutuamente necessárias, assim também a justificação não pode ocorrer sem a expiação pelos pecados, pois as pessoas não podem ser consideradas justas se elas estão sob a ira de Deus. Por outro lado, a expiação também não pode ser entendida sem seu com­panheiro inseparável, o recebimento da justiça, que nos capacita não apenas a sermos trazidos a um estado de inocência, mas nos faz aptos para entrarmos em comunhão com um Deus justo e santo.

Cristo é a única base da nossa justificação. Em nós mesmos, somos culpados diante de Deus. Todos nós pecamos em Adão. A única solução para o pecado e para a culpa que o acompanha é a morte expiatória de Cristo, realizada em nosso lugar. Somente Cristo, que cumpriu perfeitamente a lei e não come­teu pecado, poderia se apresentar em nosso benefício e realizar a expiação pelos nossos pecados. Ao fazer isso, ele obteve perdão para nós e aplicou sua justiça a nós. Como a expiação não possui nenhuma outra base além de Cristo, o mesmo ocorre com nossa justificação. É por isso que somos justificados somente pela graça, pois é pela justiça de outra pessoa (Jesus Cristo) que somos feitos justos diante de Deus. Isso não é nossa obra própria, mas o dom de Deus, o resultado de tudo o que Cristo fez em favor de seu povo. Isso é imerecido, uma obra da bondade e misericórdia de Deus. Como consequência, também somos justificados somente pela fé ou mediante a fé, pois a fé salvadora é o abandono da confiança em nós mesmos e o es­tabelecimento de um compromisso com Jesus Cristo. Ao nos entregarmos a ele estamos con­fessando tanto nossa pecaminosidade quanto apenas a justiça de Cristo, a qual é suficiente para nos capacitar a viver com Deus.

II. Elementos da justificação

Há dois elementos da obra de justificação, que são a remissão dos pecados e a imputação da justiça de Cristo ao pecador.

a) A remissão dos pecados. A remissão dos pecados está baseada na obediência completa e absoluta de Cristo, isto é, em seu perfeito cumprimento da lei. Vários textos do Antigo Testamento apontam para este elemento da obra de justificação (Sl 32.1; Is 43.25; 44.22; Jr 31.34). O perdão concedido por Deus na justificação aplica-se a todos os pecados, pas­sados, presentes e futuros, e, por isso, envolve a remoção da culpa e de toda a penalidade. Isso acontece porque a justificação não pode ser repetida. Passagens como Romanos 5.21; 8.1,32-34; Hebreus 10.14; Salmos 103.12; Isaías 44.22 nos asseguram que ninguém pode lançar nada na conta da pessoa justificada, que está isenta de condenação e é herdeira da vida eterna.

É verdade que, depois de serem justificados, os crentes continuam sendo pecadores, isto é, continuam cometendo pecados (Tg 3.2; 1Jo 1.8). Aliás, a Escritura nos mostra claramen­te que os redimidos muitas vezes cometem pecados bastante graves. O próprio Cristo ensinou os discípulos a orarem diariamente pelo perdão de pecados (Mt 6.12) e as pessoas piedosas mencionadas na Bíblia estão sempre pedindo perdão pelos seus pecados (Sl 32.5; 51.1-4; 130.3-4). Na verdade, na justificação, Deus realmente remove de nós a culpa pelo pecado, isto é, a sujeição do pecador à puni­ção eterna devida ao pecado (a morte eterna), mas não a culpabilidade inerente a qualquer pecado que seja praticado. Essa culpabilidade permanece e sempre produz nos crentes um sentimento de culpa, de separação de Deus, de tristeza, de arrependimento, de frustração e assim por diante. Por isso eles sentem necessi­dade de confessar os seus pecados, até mesmo os pecados antigos que porventura ainda os incomodem (Sl 25.7; 51.5-9). O crente tem, no íntimo, consciência de seu pecado e essa consciência o leva a confessá-lo e a buscar em Deus a consoladora segurança do perdão. A consciência do perdão e de um renovado relacionamento filial com Deus muitas vezes é perturbada e obscurecida pelo pecado, mas é novamente despertada e fortalecida pela confissão e pela oração.

b) A imputação da justiça de Cristo. A jus­tificação envolve o perdão de pecados, mas é mais do que isso. Na justificação, Cristo não apenas tira de nós a nossa iniquidade, mas também nos veste de branco, isto é, nos reveste com a sua própria santidade. A Josué, o sumo sacerdote, que, como representante de Israel, estava perante o Senhor usando vestes sujas, o Senhor disse: “…eis que tenho feito que passe de ti a tua iniquidade e te vestirei de finos trajes” (Zc 3.4). A Escritura diz que, pela fé, obtemos “…remissão de pecados e herança entre os que são santificados…” (At 26.18); que a fé nos traz não apenas paz com Deus, mas também acesso a Deus e alegria na esperança da glória (Rm 5.1-2); e que Cristo nasceu sob a lei também “para que recebês­semos a adoção de filhos” (Gl 4.5). Com isso, distinguimos duas partes na imputação da justiça de Cristo ao pecador, que são: a adoção de filhos e o direito à vida eterna.

1. Adoção de filhos. Os crentes são, antes de tudo, filhos de Deus por adoção. Isso significa, naturalmente, que eles não são filhos de Deus por natureza. Nem todos os seres humanos são filhos de Deus. Somente aqueles que possuem um relacionamento filial com Deus, por meio de Cristo, são fi­lhos de Deus. Por intermédio dessa adoção, Deus coloca o pecador no estado de filho e passa a tratá-lo como filho. Em virtude de sua adoção, os crentes são inseridos na família de Deus, ficam sob a lei da obediência filial e passam a ter direito a todos os privilégios da filiação. A adoção como filhos e a filiação moral dos crentes andam de mãos dadas. Por um lado, eles são adotados por Deus como filhos. Por outro, eles passam a se comportar como filhos de Deus. Paulo nos mostra esses dois elementos da adoção funcionando lado a lado: “…Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos. E, porque vós sois filhos, enviou Deus ao nosso coração o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai” (Gl 4.4-6). O Espírito de Cristo nos regenera e nos san­tifica e nos estimula a nos dirigirmos a Deus cheios de confiança, vendo-o como nosso Pai. Somos adotados por Deus e tratados como seus filhos. Por isso, devemos assumir nossa relação filial com Deus e nos comportarmos como seus filhos.

2. O direito à vida eterna. Este direito está incluído em nossa adoção como filhos. Quando os pecadores são adotados por Deus, eles passam a ter todos os direitos de filhos e, por isso, tornam-se herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo (Rm 8.17). Isso significa, antes de tudo, que eles se tornam herdeiros de todas as bênçãos da salvação nesta vida, sendo que a mais fundamental dessas bênçãos é o dom do Espírito Santo. No entanto, a herança que recebemos de Deus não se limita a bênçãos espirituais nesta vida, mas também inclui as bênçãos eternas do porvir. De acordo com Romanos 8.23, a redenção do corpo, que, ali, é chamada de “adoção de filhos”, também pertence à herança futura, a qual aguardamos. Em Romanos 8.29-30, a glorificação futura está claramente ligada à justificação. Sendo justificados pela fé em Cristo, os crentes se tornam filhos de Deus e herdeiros da vida eterna.

 

III. A justificação pela fé

A Escritura nos ensina que somos justi­ficados pela fé (Rm 3.28,30) ou mediante a fé (Rm 5.1; Gl 2.16; Fp 3.9), mostrando, assim, que existe uma estreita relação entre a justificação e a fé. Muitas vezes se diz que os ensinamentos de Tiago conflitam com os de Paulo neste ponto. As pessoas que argu­mentam dessa forma usam o texto de Tiago 2.14-16 para afirmar que Tiago ensina a justificação pelas obras. Na verdade, não há conflito entre Tiago e Paulo. A diferença entre os escritos de um e de outro se deve, pelo me­nos em grande parte, à natureza das pessoas para as quais suas cartas foram escritas. Paulo escreveu para combater o erro dos legalistas que procuravam basear sua justificação nas obras da lei. Para estas pessoas, Paulo teve de ser enfático ao dizer que a justificação é pela

fé, não por obras. Tiago, por outro lado, teve o objetivo de corrigir os erros dos chamados antinomianos (anti = contrário; nomos = lei), que alegavam ter fé, mas cuja fé era uma simples aceitação intelectual da verdade, sem nenhum compromisso com a prática de boas obras ensinada abundantemente na Escritura. A essas pessoas, Tiago teve de lembrar que a fé sem obras é morta e, portanto, de modo nenhum está ligada à justificação. A fé que justifica é a fé viva, genuína, frutífera, que se manifesta em obras. Mesmo quando diz que Abraão foi justificado pelas obras ao oferecer Isaque sobre o altar (Tg 2.21), Tiago se apres­sa em dizer que as obras agiram justamente com a fé, sendo uma manifestação externa da fé, pois Abraão creu em Deus e isso lhe foi imputado para justiça (Tg 2.22-23).

Os teólogos protestantes costumam dizer que a fé é o órgão de apropriação da justifi­cação. Com isso, querem dizer que, pela fé, o pecador se apropria da justiça de Cristo e estabelece uma união consciente com Cristo. Pela fé o pecador se apropria da justiça do Me­diador, já imputada a ele no momento de sua salvação e, com base nesse ato de apropriação, ele é formalmente justificado diante de Deus. Somos justificados pela fé ou mediante a fé porque, pela fé, nos apropriamos de Cristo e de sua salvação. A fé, além de nos permitir tomar posse da justificação, também nos leva a expressar, em nosso viver diário, os frutos dessa justificação em nossa vida.

A justificação pela fé é a doutrina que marca o rompimento dos reformadores com a Igreja de Roma. A justificação, de acordo com o ensino de Roma, era pelas obras. Esse ensino escravizava a mente e o coração das pessoas, que nunca podiam descansar em Deus, tendo a necessidade de praticar constantemente as obras recomendadas pela igreja. Como essas obras eram sempre imperfeitas e os pecados das pessoas estavam sempre em sua mente, o papado instituiu a venda de indulgências, como uma forma de garantir perdão pelos pecados (havia diferença de preço entre as indulgências que perdoavam apenas os pecados já cometi­dos e as indulgências plenárias, que garantiam perdão para pecados passados e futuros). Além disso, a compra das indulgências também era considerada uma boa obra. Lutero, e mais tarde todos os reformadores, convencidos pela Escri­tura, começaram a pregar que a justificação é pela fé, não pelas obras. O pecador é justificado gratuitamente pela graça de Deus (Rm 3.4) e não há nenhuma possibilidade de justificação pelas obras da lei (Rm 3.28; Gl 2.16; 3.11). A base da justificação só pode ser encontrada na justiça perfeita de Cristo, imputada ao pecador na justificação e apropriada pela fé (Rm 3.24; 5.9,19; 8.1; 10.4; 1Co 1.30; 6.11; 2Co 5.21; Fp 3.9).

 

Conclusão

No século 16, o resgate da doutrina da justificação pela fé trouxe nova vida para a igreja de Cristo. A redescoberta desta doutri­na provocou a rejeição da justificação pelas obras, o repúdio à venda de indulgências e uma genuína comunhão do cristão com seu Senhor. Por isso, no Dia da Reforma, temos muito o que comemorar. A justificação pela fé continua trazendo novidade de vida hoje. Sempre que um pecador descobre em Cristo o perdão para os seus pecados, é adotado como filho de Deus e se torna herdeiro do reino de Deus.

 

Aplicação

Quais aplicações práticas você consegue enxergar para o fato de a justificação ser pela fé e não pelas obras? Isso significa que não há lugar para as boas obras na vida cristã? Se houver, que lugar é esse?

Autor do estudo: Vagner Barbosa
Estudo publicado originalmente pela Editora Cultura Cristã, na revista Palavra Viva – Da Criação à volta de Cristo. Usado com permissão.

 

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8 Comentários para “JUSTIFICAÇÃO — o ponto de partida da Reforma”

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