A corrupção hereditária é repetidamente admitida e confessada através da história, não importando o sexo, a idade, a época, o grau de cultura, a crença nem o nível social

O que interessa mais: um texto sobre a nascente da corrupção ou um texto sobre a história da corrupção? Como o primeiro é o prefácio do segundo torna-se claro que aquele é mais importante que este. Antes de percorrer o rio Amazonas até a sua foz ao norte da ilha de Marajó, é de bom alvitre conhecer como e onde ele nasce nos Andes peruanos a mais de 5 mil metros acima do nível do mar. Para conhecer a história da corrupção e todas as suas implicações, é preciso conhecer a nascente da corrupção nos primórdios da história.

Para descobrir a idade da corrupção basta descobrir a idade do ser humano. Isto quer dizer que a corrupção é tão antiga quanto a criatura humana. Para ser mais exato, a corrupção é um pouco mais nova. Entre a criação do ser humano e a queda há um espaço de tempo ignorado.

Há um acontecimento de grande importância que envolve toda a humanidade que, em linguagem teológica, tem o solene nome de “a queda do homem”. A experiência da queda, que Agostinho chamava de “pecado original”, destrói a naturalidade, divide a personalidade, altera dramaticamente o comportamento e desaponta o ser humano. Embora essa queda tenha ocorrido em tempos remotíssimos e historicamente diga respeito ao primeiro ser humano, tal experiência é universal e coletiva – não poupa ninguém. Todo homem é solidário a Adão e vem ao mundo com esta natureza decaída.

Ao discorrer sobre o assunto, Lutero é veemente: “O pecado original é uma privação total de toda a retidão e de toda a potência de todas as forças tanto do corpo quanto da alma do homem por inteiro, interior e exterior”.

É certo, como diz Paul Tillich, que “as forças biológicas, psicológicas e sociológicas exercem uma influência real sobre toda decisão individual”. Ao mesmo tempo, é preciso lembrar que, à luz das Escrituras Sagradas (Gn 3), “a atual miséria humana da humanidade originou-se do pecado, presente na humanidade desde o início”, muito embora essa imagem não corresponda à intenção criadora de Deus.

Essa corrupção hereditária, isto é, a presença do mal dentro do ser humano, não importando seu sexo, sua idade, sua época, seu grau de cultura, sua crença e seu nível social, é repetidamente admitida e confessada através da história. No primeiro século da era cristã, Sêneca declarou: “Somos todos perversos. O que um reprova no outro, ele acha em seu próprio peito. Vivemos entre perversos, sendo nós mesmos perversos”. Na mesma época, Paulo confessava abertamente: “No íntimo do meu ser tenho prazer na lei de Deus; mas vejo outra lei atuando nos membros do meu corpo, […] tornando-me prisioneiro da lei do pecado que atua em meus membros” (Rm 7.22-23). No século 17, Blaise Pascal afirmou que “o coração humano é oco e cheio de baixeza”. No século 18, Johann Goethe foi muito honesto ao dizer: “Não vejo falta cometida [por outra pessoa] que eu não pudesse ter cometido”. No século 19, Fiódor Dostoiévski não hesitou em afirmar que “em todo humano, naturalmente, há um demônio escondido”. No século 20, Francis Schaeffer, um ex-agnóstico convertido à fé cristã, explicou: “O homem em primeiro lugar está separado de Deus; em segundo, está separado de si mesmo (daí os problemas psicológicos da vida); em terceiro, está separado dos outros homens (daí os problemas sociológicos da vida); e em quarto, está separado da natureza (daí os problemas ecológicos)”. E agora, ainda no início do século 21, o psicanalista Contardo Calligaris reflete: “Há, às vezes (mais vezes que parece), escondidas em nosso âmago, ambições envergonhadas ou vergonhosas, que não confessamos nem a nós mesmos”.

O que mais surpreende é que a maior parte desses testemunhos de corrupção hereditária é redigida não por religiosos e teólogos, mas por jornalistas, escritores e profissionais liberais, como pode ser visto no livro Por que (Sempre) Faço o que não Quero? (Ultimato, 2011), em que há mais de cem pronunciamentos nessa linha, retirados em seu maior número de revistas e de jornais seculares.

Texto originalmente publicado na edição 343 de Ultimato.

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