De como a Espiritualidade do Deserto nos ensina a perdoar e encobrir o pecado dos outros

 

Marcus Vinicius Matos*

 

Monastery of Saint Macarius the Great, Wadi El-Natroun, Egypt.

O Monastério de Santo Macarius, O Grande. Wadi El-Natroun, Egito. Foto de: Faris Knight

O orgulho continua sendo o principal entrave a termos uma real comunhão com Deus. Essa é a minha experiência. Talvez seja a sua. E, possivelmente, seja a experiência mais marcante na história da Igreja. Toda vez que ela se engaja em uma espécie de “cruzada” – seja contra outras religiões, ou contra determinado estilo de vida – ela se esquece da sua função. A Igreja não foi criada para combater pecadores, ou mesmo o pecado em si. Sua função é acolher o pecador no processo de arrependimento de seus pecados. Ajudá-lo a abrir mão de suas autodefesas e do seu instinto de autopreservação, que é estritamente ligado ao orgulho: reconhecer suas falhas, suas fraquezas e sua condição de pecador.

 

 

O processo de arrependimento requer, em primeiro lugar, um processo de reconhecimento de si. Por incrível que pareça, abrir mão do orgulho requer amar a si próprio. Mas talvez nada seja mais difícil para um pecador arrependido do que, consciente dos seus próprios pecados, amar a si próprio. Esse é um esforço que exige de nós admitir duas coisas. Em primeiro lugar que, apesar de mim mesmo, da minha condição, e das minhas falhas, Deus me ama. Em segundo, o que é mais difícil, eu preciso fazer o mesmo pelo meu próximo.

 

Parecem duas tarefas simples. No entanto, demandam a admissão da nossa insuficiência gerada por um profundo senso de amor próprio, que reconhece seus limites e suas falhas. Nosso instinto inicial é o de ser duro conosco, e adotar um rigor severo com nossas próprias falhas. Queremos nos punir por nossos próprios pecados, porque isso nos dá a sensação de que há algo que possamos fazer para redimir nossa própria condição. Aceitar que Deus nos ama, enquanto pecadores, talvez seja a tarefa mais exigente para o coração orgulhoso. Assim como Naamã, o orgulhoso general Sírio (2 Reis 5:1-27) que inicialmente se recusa a simplesmente aceitar a dádiva de Deus, sem fazer nada em troca; nós também nos recusamos a mergulhar no rio. O orgulho é a principal razão de sermos duros com nós mesmos, e com nosso pecado. É a nossa resistência à graça e ao amor incondicional de Deus.

 

Cave of Saint Macarius the Great

A Caverna de Santo Macarius, O Grande. Foto de: Faris Knight 25 de Agosto de 2011

 

E se somos duros com nossos próprios pecados, por conta de nosso orgulho, faremos o mesmo com o próximo. Não há contradição nisso: é preciso amar a si mesmo, para amar ao próximo. A dureza com que lidamos com as nossas falhas, e a dureza com que impomos condições para o que o próximo encontre o perdão de Deus, são ambas fruto do nosso orgulho. Essa rigidez do nosso coração para consigo mesmo, e para com as falhas do próximo, “geralmente é acompanhada de um senso de superioridade”[1]. Essa dureza no nosso coração, fruto do orgulho, precisa ser primeiramente admitida para ser curada – assim como todos os nossos pecados.

Há dois exemplos interessantes que os Pais da Igreja e a Espiritualidade do Deserto nos trazem nesse tema: as vidas de Macarius, O Grande; e de Moises, o Negro. Macarius era um condutor de camelos egípcio, que vivia do comércio. Foi ordenado como pastor e vivia numa pequena vila onde foi falsamente acusado de engravidar uma jovem. Depois de provada sua inocência foi viver no deserto, e se tornou o primeiro monge a habitar o deserto de Scetis. Se tornou um eremita.[2] Talvez pela sua própria experiência de vida, ele se propunha a não julgar os outros. Se alguns monges eram respeitados pela suas experiências místicas, Macarius, diziam eles “era como Deus ‘que protege o mundo inteiro e carrega os pecados de todos; ele acolheu e protegeu seus irmãos, e não tinha olhos nem ouvidos para os pecados de quem quer que fosse’”.[3]

 

Moisés, chamado de O Ladrão ou O Negro, foi um escravo liberto que viveu como um ladrão na região da Nitria. Tardiamente se tornou um monge, e foi discipulado pelo padre Isadore. Se tornou um dos grandes Pais do Deserto de Scetis. Aconselhado por Macarius, foi viver em Petra. Terminou sua vida martirizado, foi morto junto com sete de seus irmãos por invasores “bárbaros”[4]. Conta-se dele que certa vez ouviu que um monge seria levado diante de um concílio e julgado. Foi convidado para participar do concílio, e não compareceu. Ao ser procurado, ele carregava uma cesta cheia de areia, que se derramava pelo caminho. Respondeu aos interlocutores, que exigiam sua presença no julgamento: “como eu poderia julgar a meu irmão, se meus pecados me perseguem como a areia que se derrama dessa cesta?”[5]

 

Uma das marcas da caridade dos Pais do Deserto era que eles não julgavam. Não é que o pecado tenha que ser tratado de forma “light”. Ao contrario, é necessário admitir a densidade de nossos pecados, e nossa profunda condição de pecadores, para poder de fato lidar com ele. Assim como só o amor de Deus nos salva dos nossos próprios pecados; só o amor ao próximo é capaz de levar-nos a Deus. O nosso orgulho, e o nosso julgamento, jamais será capaz de tal feito. É preciso amar a si próprio, e ao próximo, para que possamos desenvolver qualquer entendimento da espiritualidade cristã que seja “mais do que um mero disfarce”[6].

 

Aqueles que se concentram no pecado dos outros, perdem a dimensão mais importante de si: suas fraquezas. Enquanto a Igreja insistir em perder tempo acusando grupos, minorias e outras religiões de seus pecados; ou insistir em acusar seus próprios membros de “idolatria”, resultado da não adoção de uma suposta “cosmovisão cristã”; ela, a Igreja, não estará apta a fazer como Eliseu: perdoar Naamã pelo pecado que ainda iria cometer, ao curvar sua cabeça a um falso deus, por dever cívico (2 Reis 5: 17-19). Rowan Williams, parafraseando um monge do deserto, dizia que “quem está preocupado em enterrar seus próprios cadáveres, não tem tempo de procurar os corpos putrefatos no quintal do seu vizinho”[7]. Que essa seja nossa preocupação, e nossa ocupação, a cada dia.

 

________________________________________________________________________________________________________________________

*Marcus Vinicius Matos é Doutorando em Direito no Birkbeck College (Universidade de Londres, Inglaterra), Professor de Direito Público e Teoria de Direito. Frequenta atualmente a Christ Church Rio, em Botafogo, Rio de Janeiro. É membro da  Diretoria Nacional da Aliança Bílbica Universitária do Brasil (ABUB). É casado com Priscila Vieira e pai de Aurora. Instagram e Twitter: @mvdematos.  Siga também as páginas do Blog Dignidade e da Rede FALE no Facebook. As opiniões expressas nesse texto são de responsabilidade exclusiva do autor.

________________________________________________________________________________________________________________________

 

Notas:

[1] Rowan Williams – Life, death and Neighbours, YouTube: World Community for Christian Meditation, 2015.

[2] WARD, Benedicta, The Sayings of the Desert Fathers: The Alphabetical Collection, Revised Edition. Kalamazoo, Michingan, USA: Cirtercian Publications, 1984, p. 124.

[3] Ibid., p. xxv.

[4] Ibid., p. 138.

[5] Ibid., p. xxv.

[6] DART, Ron, Rowan Williams’ “Silence and Honey Cakes: The Wisdom of the Desert” — Review by Ron Dart, Clarion: Journal of Spirituality and Justice, disponível em: <https://www.clarion-journal.com/clarion_journal_of_spirit/2011/06/rowan-williams-silence-and-honey-cakes-the-wisdom-of-the-desert-review-by-ron-dart-.html>, acesso em: 18 nov. 2018.

[7] Rowan Williams – Life, death and Neighbours.

 

Leia também:

A Lectio Divina me fez encontrar a história da Igreja

+ A idolatria do(de) mercado: o homem todo para o dinheiro (todo)

A dignidade, o instante e o anônimo

 

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *