Dedicado aos recém casados Rev. Dr. Daniel R. Cabral e Dra. Gabriele Greggersen .

“Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como o bronze que soa ou como o címbalo que retine.” (1 Coríntios 13: 01)
“Assim é que o amar e o Amor não é todo ele belo e digno de ser louvado, mas apenas o que leva a amar belamente.” (Platão, O Banquete)

Em Quatro Amores C.S.Lewis faz uma bela distinção e uma das melhores abordagens da Afeição, da Amizade, Eros e Caridade. Nosso trabalho, a nível de introdução, é estabelecer os limites de proximidade, ou ainda, se deve haver realmente limites, entre dois desses amores: Eros e Amizade. Lewis foi sempre muito cauteloso em tratar desse tema que nos é tão comum, suspeito que a causa disso seja que a mera tentativa de descrever a intensidade que pode, em alguns poucos casos, diga-se de passagem, haver entre esses dois amores não é só difícil, mas comprometedor. A amizade deve ser de tal modo valorizada que possa receber a honra de sua grandeza sem a intervenção de Eros. O contrário disso já acontece com frequência em tempos de demasiado romantismo hollywoodiano, mas não deveria, de fato, acontecer. Quem leu a mitologia de J.R.R.Tolkien sabe do vigor que Eros dá a Beren e Luthien no resgate, aparentemente impossível, das Silmarilion. Mas quem não ficou só nos tempos primitivos da Idade Média ou pode acompanhar a super produção de O Senhor dos Anéis, sabe que o paralelo perfeito à essa aparente impossibilidade encontra-se em Frodo Bolseiro e Sam Wise, com duas únicas diferenças, não se tratava de um resgate, mas de uma incumbência de destruição, e não fora Eros o amor que lhes suscitou a força necessária, mas a Amizade; a mesma que fez com que Olga saísse em busca de Policarpo Quaresma na tentativa de salvá-lo da morte na triste história de Lima Barreto; ou ainda a que fez Jonatas amar a Davi e livrá-lo da perseguição de Saul, legando-nos uma das mais belas histórias de amizade já registradas. Podemos ter plena certeza de que às vezes nossas amizades são mais intensas do que nossos outros amores, obviamente não há perigo em afirmar isso, nosso Senhor disse ser nosso Pai, mas também disse ser o nosso amigo (João 15:14).

Há ainda um outro tipo de perigo, a idéia de que todo tipo de amor é, por si só, bom. Pretendo falar mais sobre isso no final deste artigo, mas não dá nem para começar se não estivermos conscientes do perigo em que estamos se todos os nossos amores não dependerem daquela experiência extraordinária de amor que nós chamamos graça e que só a achamos em Cristo Jesus. O único amor sobre o qual podemos solidificar nossa esperança, alegria e paz, é aquele que, para usar as palavras de Paulo, “não passa” (1 Coríntios 13:13).

Feita as devidas observações, passo agora à pergunta principal: pode Amizade conviver junto com Eros?
Antes de fornecer uma resposta, rápida e objetiva, quero conduzi-los à uma história que certamente deve esclarecer um pouco mais as coisas. Antes eu disse que Lewis não compôs algo como um capítulo dedicado à relação entre Amizade e Eros, mas é preciso acrescentar que sua própria biografia nos fornece esse conteúdo. A partir de agora vamos penetrar na emocionante história de amor vivida entre Joy Davidman e C.S.Lewis.

Em Os Quatro Amores Lewis nos lembra da pouca probabilidade de um homem tornar-se amigo de uma mulher, principalmente pelo fato de o gosto dos dois sexos serem, na maioria das vezes, absolutamente diferentes. Mas isso tem se tornado uma realidade cada vez mais restrita ao passado. Em tempos em que a mulher se torna cada dia mais participativa na sociedade, e de forma prática, torna-se mais comum ambos os sexos compartilharem preferências políticas, ambientais, trabalhistas, religiosas e etc. Mesmo na época de Lewis essa mudança já era evidente para o autor. Entretanto, com algumas exceções, o círculo de amigos de Lewis geralmente era composto por homens. Além disso, Lewis sempre fora bastante receoso em sua relação com mulheres que ultrapassa-se os limites da amizade. No capítulo em que ele fala sobre Caridade, descreve uma característica própria de sua personalidade da seguinte forma:

“Sou uma criatura que põe a segurança em primeiro lugar. De todos os argumentos contra o amor, nenhum seduz tão fortemente minha natureza quanto esse: “Cuidado! Isso pode fazê-lo sofrer!”

Talvez tenha sido exatamente esse tipo de pensamento a passar pela sua cabeça quando conheceu Joy Davidman. A principio Joy era apenas mais uma das muitas leitoras de Lewis residentes dos EUA, passou a ser uma correspondente e os dois passaram a compartilhar tanto experiências religiosas como literárias. Joy naquela época era casada, mas a relação com seu marido tornava-se cada vez pior. Com o tempo Joy mudou-se para a Inglaterra com a desculpa de que iria visitar uma amiga e dar continuidade em um livro que estava escrevendo. Em 1998, Douglas Gresham, em entrevista, deu sua opinião sobre o motivo que levou sua mãe à Inglaterra: “Seduzir Lewis”. *

Joy obteve um visto com algumas condições e passou a fazer parte dos Inklings, o seleto grupo literário que incluía tanto Tolkien quanto Lewis. É verdade que naquela época o grupo já não se reunia com tanta frequência, mas, de qualquer forma, as conversas de Joy e Lewis só aumentavam. Nesse interin, Joy fica sabendo que seu marido a traía com sua própria prima, talvez ela realmente nāo esperasse menos de um casamento que infelizmente encontrava-se em frangalhos. Em 1953 Joy volta aos EUA e se divorcia. Quando retorna à Inglaterra, não demora muito tempo, descobre um grave problema de saúde: câncer. Joy está divorciada, com dois filhos, longe de seu país e à beira da morte.

Talvez essa seja a fase em que Lewis e Joy mais se aproximam. É verdade que antes de Joy ficar doente ela já tinha se casado com Lewis, mas era um casamento, para usar as palavras de Tolkien (amigo próximo de Lewis), “estranhíssimo”. Casaram-se para viabilizar a permanência de Joy na Inglaterra, já que o prazo de seu visto havia terminado. Era, portanto, um casamento que não comprometia emocionalmente os dois. Porém, realmente não podemos imaginar outra coisa se não que, aos poucos, o humor e a inteligência de Joy iriam cativar o cauteloso coração de Lewis. O cenário é exatamente esse e a doença de Joy foi a cartada final do destino que decidira unir os dois não só na Amizade, mas também em Eros. Em carta à sua famosa amiga e romancista Dorothy Sayers, Lewis escreve sobre sua mudança de sentimento em relação a Joy fazendo alusão a Thanatos, o deus grego da morte. Ele escreve :

“Meus sentimentos haviam mudado. Dizem que um rival transforma um amigo num amante. Thanatos certamente (dizem) se aproximando, mas em uma velocidade incerta, é um rival eficientíssimo nesse sentido. Nós logo aprendemos a amar o que nós sabemos que devemos perder.”**

A alegria que Lewis e Joy compartilhavam, mesmo está estando doente, nos faz lembrar de Santo Agostinho e da famosa passagem de Confissões em que o bispo de Hipona relata a perda de seu amigo Nebrídio. A tristeza que Agostinho descreve em relação à perda de seu amigo nos leva à consideração de que não devemos depositar nossa felicidade em nada que possamos perder. Foi justamente esse registro primitivo que levou Lewis a escrever uma das máximas mais citadas de Os Quatro Amores:

“Para que o amor seja uma bênção, e não uma dor, ele deve se dirigir ao único Amado que nunca morrerá.”

Mas o que o leitor desatento não percebe é que Lewis cita Agostinho quase em um tom de reprovação – note que ele faz isso, para usar suas próprias palavras, com muita “hesitação”. Após confessar a dívida que tem com Agostinho, Lewis chega mesmo a dizer que tal pensamento é mais um “remanescente das nobres filosofias pagās da formação de Santo Agostinho do que parte de seu cristianismo”. Lewis vira a mesa citando o choro de Cristo sobre o túmulo de Lázaro e a possível perda que o apóstolo Paulo teria se Epafrodito, seu “companheiro de lutas”, partisse dessa para melhor. Paulo não se detém em dizer que tal coisa o levaria a “tristeza sobre tristeza” (Filipenses 2;27). O ponto de Lewis é que, mesmo sabendo que Lázaro poderia morrer, Jesus não o deixou de amar, mesmo sabendo, em sua onisciência, que iria derramar lágrimas sobre sua morte; o apóstolo dos gentios, da mesma forma, não deixou de amar Epafrodito mesmo presumindo sua possível perda e Paulo, diz Lewis, “tem maior autoridade sobre nós do que Santo Agostinho”. Em uma conclusão que deveria ficar registrada como o parágrafo mais estonteante de toda literatura cristã produzida no séc. XX, Lewis nos leva à uma reflexão estarrecedora:

“Nāo há saída pelo método sugerido por Santo Agostinho. Nem por nenhum outro método. Não existe investimento seguro. Amar é sempre ser vulnerável. Ame qualquer coisa e seu coração certamente vai doer e talvez se partir. Se quiser ter a certeza de mantê-lo intacto, você não deve intregá-lo a ninguém, nem mesmo a um animal. Envolva-o cuidadosamente em seus hobbies e pequenos luxos, evite qualquer envolvimento, guarde-o na segurança do esquife de seu egoísmo. Mas nesse esquife – seguro, sombrio, sem movimento, sem ar -ele vai mudar. Ele não vai se partir – vai se tornar indestrutível, impenetrável, irredimível. A alternativa à tragédia, ou pelo menos ao risco de uma tragédia, é a condenação. O único lugar além do Céu onde se pode estar perfeitamente a salvo de todos os riscos e perturbações do amor… é o inferno.”

Em 21 de março de 1957 Lewis e Joy celebram uma cerimônia religiosa de casamento feita de improviso no leito do hospital onde Joy estava internada. Aquela cerimônia, diferente do registro civil, tornava o relacionamento mais do que um simples álibe para que Joy permanecesse de forma legal na Inglaterra. A coisa toda se tornou muito mais do que isso, Lewis se entregara à vulnerabilidade do amor.

É claro que, sobre todos os aspectos, Lewis e Joy permaneceram amigos. O encontro da Amizade e Eros nāo precisa arruinar um em detrimento de outro. Lewis retrata Joy como “minha amada, mas, ao mesmo tempo, tudo o que nenhum amigo (e olha que tenho bons amigos) jamais foi para mim” ***. O encontro perfeito nāo coloca em perigo a majestade que carrega os amores, a dádiva consiste justamente em que a combinação torne ainda mais forte as características próprias de cada um dos sentimentos. Os anos de inverno da vida sentimental de Lewis havia chegado ao fim, a primavera dera os seus primeiros sinais.
O período em que esteve próximo de Joy fora, de fato, um dos mais inspiradores da vida literária de Lewis. É nessa época que Lewis escreve “Até que Tenhamos Rostos” (1956), “Lendo os Salmos” (1958) e “Os Quatro Amores” (1960). Principalmente Os Quatro Amores, deixa claro a influência do relacionamento de Joy e Lewis. O romance entre o casal que tinham em comum o gosto pela boa literatura, só podia ser nitidamente compreendido por aqueles que sabiam que havia algo mais que os unia, a busca de Deus. Em uma passagem épica de O Banquete encontramos uma boa sinalização pré-cristā de como o amor pode refletir uma busca que transcende os limites do tempo:

“[…] Depois de ouvir essas palavras, sabemos que nem um só diria que não, ou demonstraria querer outra coisa, mas simplesmente pensaria ter ouvido o que há muito estava desejando, sim, unir-se e confundir-se com o amado e de dois ficarem um só. 0 motivo disso é que nossa antiga natureza era assim e nós éramos um todo; é portanto ao desejo e procura do todo que se dá o nome de amor.”****
Quem seria cético o suficiente para não enxergar o claro significado dessa passagem. O “todo” de Platão pode muito bem ser entendido como o estado natural do homem ligado à Deus, o amor entre um homem e uma mulher é um reflexo da constante busca de retorno à esse estado de plena comunhão com Deus. Há, contudo, duas possibilidades sobre como os nossos relacionamemtos refletem essa busca: podemos estar no caminho certo ou completamente perdidos.
Quem poderia negar que Lewis e Joy estavam na estrada certa, mesmo havendo, a princípio, uma série de circunstâncias negativas e todo um oceano que os separava. No entanto, infelizmente o romance entre Lewis e Joy durou muito pouco, e Joy faleceu de câncer três anos após se casarem no leito do hospital, em 1960. O risco sempre é real e o período de alegria compartilhada com aquela a quem ele havia entregado o seu coração chegou ao fim. Talvez uma das piores experiências de Lewis. Durante seu período de luto escreveu algumas notas que revelam o desespero desse momento, mais tarde foram publicadas sob o título de “A Anatomia de uma Dor”. Essa obra, por si só, daria um novo artigo. Ali, C.S.Lewis lida de forma prática com o problema do sofrimento e expressa o tamanho da sua angústia com a perda de sua amada.

A morte a levou e ensinou Lewis que arriscar é preciso, mas o sofrimento da perda é sempre mais real na prática do que na teoria. Não há muita segurança no amor, mas a possibilidade da perda ou da decepção não deveria desanimar ninguém, apenas fazer refletir sobre se o amor em questão é reflexo de um amor maior ou se, na pior das hipóteses, apenas uma tentativa deseperada de preencher um vazio que só pode estar perfeitamente pleno com a presença e o amor do Criador.

Lewis perdeu Joy, mas dizem que na eternidade nos encontraremos com aquilo que há de eterno em cada pessoa – quem leu O Grande Abismo já aprendeu isso. Talvez possamos imaginar que, ao falecer em 1963, Lewis tenha tido a oportunidade de rever o melhor de Joy no “céu”. Mas, como escreve Lewis (por incrível que pareça, antes da morte de Joy), isso tudo”está distante, no ‘mundo da Trindade’, e não aqui, no exílio, no vale de lágrimas”.*****

Não temos certeza de como são algumas coisas além do nosso campo de vista decaído e temporal, mas podemos ter certeza que se o relacionamento deles tinha alguma coisa de eterno, eles hāo de reencontrá-lo em Cristo. Podemos ter certeza de que todas as história de verdadeira amizade e amor foram desde antes de todos os tempos planejadas por Aquele que sabe e quer que todas as coisas cooperem para o nosso bem. Ele não coloca uma vírgula que não seja necessária e nem um ponto onde não se perceba sua soberania. Ele é o começo e o fim, o Alfa e o Ômega. Todos os amores só são possíveis a medida que refletem o brilho de sua graça.

Com efeito, os filósofos costumam dizer que a beleza nāo está no amor, no simples ato de amar não se encontra a chave para a felicidade. Aqueles que assim acharem morrerão esperando à porta. Mas é no que leva a amar é que se encontra a verdadeira alegria e beleza. É exatamente como disse Platão: “[…] o amar e o Amor não é todo ele belo e digno de ser louvado, mas apenas o que leva a amar belamente.” **** Lewis, sem dúvida, teria dito que isso é uma placa que indica a direção de Cristo, no qual encontramos toda fonte de verdadeira amizade e verdadeiro amor, Ele próprio é a Dádiva do encontro. Sem Ele todas as histórias de amor seriam foscas e sem brilho.

Voltemos agora à nossa pergunta inicial: pode a Amizade conviver junto com Eros? A própria história de Lewis e Joy demonstra que a resposta é sim, mas não um sim definitivo que dispense exceções. Já aprendemos que respostas rápidas para questões complexas, são respostas ruins. Às vezes não precisamos tanto de uma resposta quanto de tempo e talvez o grande segredo que a vida nos ensine sobre esses casos seja o de que é preciso viver um dia após o outro. Joy não obteve respostas rápidas de Lewis e nem tomou decisões precipitadas quando ainda estava nos EUA, e nem Lewis quando ela já havia chegado à Inglaterra. Dentre todas as qualidades do amor, podemos dizer junto com Sāo Paulo, que ele também deve ser paciente além de recíproco. Se tem uma coisa que nós aprendemos na história de Lewis e Joy é que as circunstâncias nunca são capazes de fazer morrer os amores que se encontram enraizados naquele que ressurgiu dentre os mortos. O tempo nunca será um problema se nossos objetivos forem eternos e, como disse um grande pensador, “tudo o que não é eterno é eternamente inútil”.

* Ver McGrath, Alister. A Vida de C.S.Lewis: do ateísmo às Crônicas de Nárnia, cap. 13. Pg. 335.

**Carta a Dorothy L. Sayers, 25 de jun. 1957; The Collected Letters, vol. 3, pg. 861.

*** A Anatomia de uma Dor: Um Luto em Observação. Sāo Paulo: Editora Vida, 2007. Pg.63.

**** Platão. O Banquete (o amor, o belo), versão Kindle.

***** Idem.
Obs.: Todas as citações de Lewis (salvo indicação contrária), inclusive a que se encerra o texto, encontram-se no sexto capítulo de Os Quatro Amores, em que se fala sobre a Caridade.

Sobre o autor:
Filipe Galhardo é editor da Sociedade C.S.Lewis Brasil e Diácono na Igreja Presbiteriana de Jaconé.

  1. Antonio Carlos Ramos Bacelar

    Parabéns pelo texto. Muito bom. Em tempo, aproveito para pedir que me envienvie , se possível, a lista com todos os livros escritos por Lewis.
    Desde já agradeço.

    • Oi Antonio,
      Que bom que gostaste. Obrigada.

      Uma lista detalhada encontra-se no meu livro O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa e a Bíblia. Editora Prismas. Está na Amazon e Livraria Cultura.

      Abraços

      Gabriele

  2. Que coisa mais tremendamente linda! Uma dádiva, esse texto! Amo C.S. Lewis e, como li quase todos os livros dele publicados em português, não tem como não ficar emocionada com essa abordagem sobre a Caridade, em os “Quatro amores”. Gratidão. Paz.

    Ivy Menon

    • Que bom que gostou, Thaiane, e que bom saber do seu gosto por C.S. Lewis. Ajude-me a divulgar esse importatne pensador cristão. Somos parceiras nisso.

      Grande abraço

      Gabriele

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