1. De acordo com artigos seus, as obras de C.S. Lewis eram pouco conhecidas no Brasil, muitas delas nem sequer foram traduzidas. Na época do lançamento do filme “O Leão, a feiticeira e o guarda-roupas” a sua expectativa era a inversão dessa situação. Hoje, é possível afirmar que ela mudou?

Sim, graças a Deus e à visão de algumas editoras, como a Martins Fontes, que resolveu comprar boa parte dos direitos autorais e investir na publicação de novas traduções ou versões revistas de traduções existentes, como no caso de As Crônicas de Nárnia, traduzida em grande parte pelo saudoso acadêmico das letras Paulo Mendes Campos. Outras editoras seguiram no vácuo, com livros do próprio autor (Editora Vida) ou sobre o autor (Editora Vida Nova e Nova Fronteira, entre outras). É claro que o lançamento do filme de Nárnia nos cinemas aqueceu esse mercado. Este ano tenho expectativas ainda maiores, pois teremos provavelmente Lewis em dose dupla: Príncipe Caspian e Screwtape Letters (Cartas de um Diabo a seu Aprendiz – Editora Martins Fontes). Há de se mencionar ainda o esforço da Editora Mundo Cristão de ter encabeçado essa onda, com a tradução inédita de sua autobiografia, Surpreendido pela Alegria, antes mesmo da investida da Martins Fontes. Sua última “cartada” foi a edição centenária do clássico de um autor que teve forte influência sobre Lewis (e tantos outros grandes pensadores/autores) G.K. Chesterton. Em Ortodoxia, ele dedica um capítulo inteiro ao que chamava de Elfolândia, ou mundo dos contos de fada. Também tenho dado várias palestras e visto o interesse pelo autor aumentar no meio cristão e não cristão. Meu site (http://cslewis.com.br), em que ofereço diversos cursos on line sobre Lewis e assuntos relacionados, tem sido prova disso.

2. O fato da Editora Martins Fontes, secular, ter comprado os direitos das Crônicas de Nárnia e o lançamento da séria em cinema pela Walt Disney causa certa surpresa, por essas empresas demonstrarem interesse por um conteúdo cristão. Qual a sua análise sobre isso?

Ora, C.S. Lewis nunca foi propriedade exclusiva dos cristãos (graças a Deus de novo rsrs). Ele desperta interesse no meio secular por algo em que muitos autores de livros propriamente evangélicos ou “devocionais” costumam deixar a desejar: profissionalismo e qualidade literária. Não é preciso ser cristão para apreciar essas virtudes. É claro que o interesse de mercado também conta. Muitos cristãos ignoram o sucesso de vendagens dos livros de Lewis no mundo todo e entre pessoas de diferentes contextos religiosos. De certa forma, a Martins Fontes inspirou-se na editora americana, igualmente secular, que comprou os direitos de Lewis nos EUA provocando vários protestos da ala cristã.

É claro que todo o processo de passagem do filme aos cuidados da Disney foi preparado e cuidadosamente acompanhado pela equipe da Walden Media (cristã) que já estava com as filmagens bastante avançadas. Houve um debate acalorado entre os cristãos e não cristãos em torno da preservação ou não dos conteúdos propriamente teológicos. Essa preocupação foi aliviada pelo fato de o filho de Joy, David Gresham, que acompanha de perto tudo o que se escreve ou filma a respeito do seu padrasto por todo o mundo, ter sido eleito co-diretor. E acho que o resultado foi mais do que satisfatório para os cristãos e não-cristãos.

3. A estréia do segundo filme, Príncipe Caspian, está prevista para maio. Qual a sua expectativa para esse filme? Qual a principal mensagem desse livro da série?

Espero que ele faça um sucesso equivalente ao livro, um dos prediletos da série de Nárnia, que só perde para O Cavalo e seu menino. É claro que, como em todo conto de fadas, você pode enxergar várias “morais”. Mas a que se destaca para mim é uma lição precisamente sobre a importância dos contos e sua moral geral. Como destacam vários estudiosos dos contos, não se trata de uma moral feita ou descartável ou imposta, mas uma moral da ação. A pergunta que um bom conto clássico nos leva a fazer é “Como devem as coisas acontecer no universo?”

Veja, se Caspian não tivesse dado ouvidos às histórias de sua babá e ao seu sábio professor, Dr. Cornélio, considerando-as meros “contos da carochinha”, como queria o rei Miraz, ele provavelmente teria morrido e todo o mundo de Nárnia e dos narnianos estariam em perigo. Mas além dessa moral que me cai nos olhos, como educadora, temos valiosas lições de solidariedade, coragem, esperança e mesmo, de humor, como ingredientes essenciais para o “bom combate”. E temos lições ainda mais específicas, para quem trabalha em organizações, tais como liderança, tomada de decisão, assertividade; administração do tempo e sabedoria.

4. No artigoMais além da magia das Crônicas de Nárnia”, você afirma que as Crônicas muitas vezes não são bem compreendidas e aceitas pelo público adulto. Explique por quê.

Esse é um problema no mundo moderno: achar que contos como esse interessam apenas a adultos. Se observarmos a história dos contos de fada, descobriremos que eles se originaram de histórias que eram censuradas para crianças, e com uma moral adulta, do tipo “mil e uma noites” ou “Ali babá e os quarenta ladrões”. Ninguém diria hoje que eles são próprios para crianças. O que ocorreu foi uma negação genérica do imaginário como sinônimo de “ilusório” e “ingênuo”, portanto próprio para crianças. Assim, se você entra numa livraria ou biblioteca hoje, por exemplo, é na sessão infantil e juvenil que irá encontrar as Crônicas de Nárnia, os contos de fada clássicos e às vezes até O Senhor dos Anéis. Mas sinto que nos últimos anos isso já tem mudado, com um movimento de resgate do imaginário e questionamento do racionalismo cientificista que predominou por todo o período moderno. Fenômenos como Paulo Coelho, Dan Brown, Rowling (Harry Potter) e Pullman têm apontado para isso. Hoje, metade dos filmes que se oferecem aos expectadores do cinema têm fundo imaginativo ou fantástico ou surreal. Nesse sentido, o pensamento pós-moderno pode eventualmente representar uma oportunidade para resgatarmos o sentido e moral mais profundos dos contos de fada para o mundo adulto. Em suma, o adulto tem dificuldade por conta de seus preconceitos racionalistas. Para entender os contos de fada ele precisa largar a mania de querer parecer adulto. Essa mania fica bem representada na figura de Susana, a única que deixa de participar das aventuras em Nárnia nas últimas histórias, porque preferiu fazer uma “viagem de verdade” com os seus pais.

5. Qual a sua opinião com relação às críticas feitas ao fato de Lewis usar figuras como feiticeira, animais falantes e outros elementos em sua narrativa? Isso prejudica a mensagem transmitida no texto das Crônicas de Nárnia?

Quem o criticava muito por essa “salada” que ele faz com as figuras mitológicas e o bestiário foi seu amigo de vida inteira, J.R.R. Tolkien, ainda no processo de criação das Crônicas. Isso o irritava tanto, porque ele era filólogo e gostava de certa ordem no mundo imaginário. Tanto que inventou verdadeiras geografias, histórias e várias línguas imaginárias. O que eu faço, quando me deparo com esse tipo de objeção é seguir o exemplo do próprio Lewis, dando de ombros e dizendo: “Tem Papai noel e tem feiticeira, sim, e daí? Alôo, estamos no mundo imaginário!!! Nele tudo é permitido, desde que a moral básica fique clara e implicada. Cadê o seu senso de humor?” E provavelmente também desconfiaria que meu interlocutor (ou interlocutora) é demasiado adulto e nunca voou pelas Terras do Nunca.

6. No artigo “Por que C. S. Lewis?” você diz que sempre teve interesse pela disputa entre academia e igreja, relatando que teve alguns problemas nos dois meios. Fale um pouco sobre essa questão e como esses dilemas foram resolvidos.

Se eu me interessei ou fui obrigada a me interessar, por força das circunstâncias é questionável. Mas admito que não ficaria falando tanto da questão, se não estivesse interessada. E também não tenho pretensão alguma de ter “solucionado” o dilema que se coloca aos pensadores desde a época de Cristo ou até antes dela. Trata-se, na verdade, da velha briga entre sagrado e o profano; entre fé e razão. Desconfio que só verei essas duas peças do quebra-cabeças re-unidas no outro mundo, onde veremos “face a face”. Enquanto isso, contento-me em servir na empreitada da construção de “pontes” entre esses dois mundos que parecem assim tão irreconciliáveis. É claro que autores como C.S. Lewis me ajudaram muito nisso. Posso dizer que eles contribuíram para que eu não perdesse a minha fé na igreja de Cristo, preservando, ao mesmo tempo, minha esperança na educação, simplesmente seguindo o seu exemplo.

// 7. Em seus estudos sobre as obras de Lewis você levanta as questões teológicas presentes nas narrativas. Dos sete livros da série Crônicas de Nárnia qual você acredita ser o mais rico em conteúdo teológico?

Opa, agora você me pegou!… Eu poderia te dar boas razões para que cada uma das sete crônicas fosse eleita a “mais teológica”. Suspeito que essa idiossincrasia se deve ao fato de elas terem saído todas da mesma mente e espírito. Mas ao invés de defender todas elas em sua peculiaridade teológica, meu voto será para o bom e velho Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupas, que também elegi como foco da minha tese, pela simples razão de essa história tocar no coração da teologia e do cristianismo: a boa nova do Evangelho; pelo simples fato de ela falar da obra redentora de Cristo. Mas é claro que continuo deixando para o leitor decidir a questão por si mesmo em suas próprias incursões pelo mundo de Nárnia…

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