Publicado em St James Magazine (St James’s Church, Birkdale, Southport, Dezembro de 1945), e reproduzido em Undeceptions (1971) e Christian Reunion (1990).Tradução de Djair Dias Filho (setembro/2008)

“Sim”, disse meu amigo. “Eu não vejo por que não deveria haver livros no Céu. Mas você descobrirá que sua biblioteca no Céu contém somente alguns dos livros que você teve na Terra”. “Quais?”, perguntei. “Aqueles que você deu ou emprestou”. “Espero que os emprestados não estejam com todas as sujas marcas de dedo de quem os pegou emprestado”, disse eu. “Ah, terão, sim”, disse ele. “Mas como as feridas dos mártires terão se transformado em adornos, assim você descobrirá que as marcas de dedo terão se transformado em belas iluminadas letras maiúsculas ou em primorosas gravuras à margem”.

“Os anjos”, disse ele, “não têm sentidos; a experiência deles é puramente intelectual e espiritual. É por isso que conhecemos algo sobre Deus que eles não conhecem. Existem aspectos particulares de Seu amor e alegria que podem ser comunicados a um ser criado somente pela experiência sensória. Algo de Deus que os serafins jamais entenderão direito flui até nós do azul do céu, do gosto do mel, do delicioso envolver da água, seja fria ou quente, e mesmo do próprio dormir”.

“Você sempre me é um peso”, disse eu ao meu Corpo. “Um peso para você“, replicou meu Corpo. “Bem, gostei dessa. Quem me ensinou a gostar de tabaco e álcool? Você, é claro, com sua estúpida idéia juvenil de ser ‘grandinho’. Meu paladar odiou a ambos, em princípio: mas você prefere fazer sua vontade. Quem pôs um fim a todos aqueles pensamentos irados e vingativos, ontem à noite? Eu, é claro, ao insistir que fosse dormir. Quem dá o seu melhor para deixá-lo longe de falar muito e comer muito, deixando-lhe seca a garganta, dando-lhe dores de cabeça e indigestão? Hein?” “E com respeito ao sexo?”, disse eu. “Sim, o que tem ele?”, revidou o Corpo. “Se você e sua desgraçada imaginação me deixassem em paz, eu não lhe daria trabalho. Isso tem tudo a ver com a Alma; você me dá ordens e depois me culpa por executá-las”.

“Orar por assuntos específicos”, disse eu, “sempre me parece como aconselhar a Deus sobre como conduzir o mundo. Não seria mais sábio supor que Ele sabe o melhor?”. “Por esse mesmo princípio”, disse ele, “imagino que você nunca peça a uma pessoa ao seu lado para passar o sal, porque Deus é quem melhor sabe se você deveria comer sal ou não. E imagino que você nunca leve um guarda-chuva, porque Deus é quem melhor sabe se você deve se molhar ou ficar seco”. “Isso é muito diferente”, protestei. “Não vejo por que”, disse ele. “O realmente estranho é que Ele deva deixar-nos influenciar o curso dos eventos. Mas uma vez que Ele nos deixa fazê-lo de uma maneira, não vejo por que Ele não deva deixar-nos fazê-lo de outra”.

Referência:

C. S. Lewis – Essay Collection: Faith, Christianity and the Church. Londres: HarperCollins, 2002, pp. 346, 347.

  1. Olá, Dra Gabriele!

    Muito interessante isso!!!
    No que fala sobre os anjos e o “debate” entre o corpo e o eu, foi Jack quem escreveu ou foi um amigo quem escreveu a ele? Algo bem ao nível das trocas de cartas dele com os amigos.

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