Versão ampliada de “A arte da costura em quatro gerações”, publicado na edição 379 (setembro-outubro) da revista Ultimato.

Por Cássia Fernandes

Zenaide e Eulália, respectivamente, avó e bisavó de Gabriela Piccoli

Quando os tataravôs da estilista Gabriela Piccoli desembarcaram em São Paulo, no final do século XIX, vindos da região de Vêneto, na Itália, traziam na bagagem sementes de linho que trocaram por sementes de algodão. Em busca do sonho de uma nova vida no país, foram para o interior do Rio Grande do Sul, onde cultivaram o algodão, tecendo com eles suas próprias roupas e uma história de amor à arte da costura que se estendeu por gerações.

A bisavó de Gabriela, Eulália, era poetisa, bordava, pintava e costurava, criando enxovais de noiva, buquês e coroas com flores de tecido. Seu talento e sensibilidade foram herdados pelos filhos, entre eles Zenaide, que também se dedicou ao ofício da costura e construiu uma grande família. Depois que os dez filhos já estavam crescidos, Zenaide cursou magistério, lecionou por décadas e, quando se aposentou, abriu em Gravataí, RS, um ateliê de noivas.

Solaine Piccoli, a mais velha dos dez irmãos, igualmente artista, desde os 7 anos já costurava as próprias roupas. Também cursou magistério e, em 1971, fez seu primeiro vestido de noiva. Em 1980, ela abriu seu primeiro ateliê de noivas em Gravataí. Não deu ponto sem nó. Como ainda não havia formação em moda no Rio Grande do Sul, Solaine cursou arquitetura e artes, custeando-os com a venda de crochê. Em 1993, mudou-se para Porto Alegre, onde se tornou uma das mais conceituadas estilistas brasileiras, vestindo noivas de todo o país.

Trabalhando ao lado da mãe sempre esteve Gabriela, assim como suas duas irmãs Camila e Julia, que continuam no ateliê de Solaine na capital gaúcha. Aliás, tesouras, agulhas e linhas estão sempre nas mãos das mulheres da família Piccoli, que tem, entre bisnetas e netas de Eulália, dez estilistas, entre elas as irmãs de Solaine: Rosa, Rosaura e Magda. As duas primeiras atuam juntas em seu ateliê e a terceira com a filha Carolina.

Com uma história tecida com tanta beleza, não poderia ser diferente: Gabriela sempre se interessou pelos temas relacionados à família, memória e genealogia, procurando abordá-los ao criar seus objetos e instalações. “Desde cedo me dividi entre a arte e a costura. Em 1993, entrei para a faculdade de artes visuais e cheguei a ter um estúdio de artes dentro do ateliê da minha mãe”, lembra. “Quando vou criar as coleções, visito museus e pesquiso referências artísticas, criando os vestidos como verdadeiras obras de arte”, conta Gabriela, que faz manualmente cada uma das peças, desde o desenho até ao manuseio das rendas e à concepção dos bordados. Como exemplo dessa estreita ligação com a arte, a estilista recorda de algumas coleções com referências marcantes: a Coleção Rainha Vitória, formada por vestidos enormes e exuberantes, e a Coleção Musas, caracterizada por assimetrias e formas mais arrojadas.

Um dom a serviço de Deus

Vestido da coleção Musas, do ateliê Solaine Piccoli. Foto: Maria Tsakiri

Embora tenha trabalhado desde o princípio ao lado da mãe, sempre com seu auxílio e orientação, Gabriela foi aos poucos desenvolvendo seu próprio estilo. Em 2008, passou a comandar o ateliê da marca, que funcionou por 11 anos na avenida Oscar Freire e que hoje se encontra na Vila Madalena, em São Paulo. Em 2013, lançou sua primeira coleção e, em 2017, abriu, juntamente com a designer de acessórios Niely Hoetsch, um ateliê e showroom em Viena, na Áustria.

Foi justamente nesse ano que uma grande transformação ocorreu na vida da estilista.  Já tendo sido criada em uma família cristã, católica, em um ambiente em que se valorizavam o amor, o respeito, o apoio às pessoas mais pobres e a doação ao próximo, Gabriela conta que naquele momento ficou ainda mais claro para ela o sentido do dom que perpassou gerações. “Repensei minha relação com Deus e tomei a decisão mais importante de minha vida ao aceitar Jesus como meu Senhor e Salvador”.

Graças a essa transformação, diz se sentir hoje mais consciente de sua responsabilidade, papel e missão como cristã. Para ela, seu trabalho é mais do que um mero ofício dentro da alta costura, pois com ele leva alegria e amor às pessoas. Quando atende as noivas e suas famílias, ou quando cria os vestidos, oferece não apenas um produto, mas também a realização de um sonho.

“Sempre que tocamos o coração de alguém por meio de nossos talentos, demonstramos o amor de Deus, nos aprimoramos como pessoas e cumprimos nosso propósito no mundo, transformando-o em um lugar melhor. Cada vez que crio um vestido de noiva, creio estar servindo a Deus, exercendo o dom com que fui contemplada, o qual pude desenvolver em família, formada por gerações de mulheres dedicadas à arte da costura” completa a estilista.

• Cássia Fernandes é jornalista, escritora e professora. Diretora de La Lumière – A Casa de Todas as Histórias, especializada na produção de videobiografias. Natural de Goiânia (GO), reside atualmente em Jericoacoara (CE).

 


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  1. Adorei esta história. Me ajudou a repensar sobre os dons e propósitos de Deus para mim. Publiquem mais temas como este, por favor! É preciso compreender hoje qual o lugar – que é amplo e em vários segmentos – da arte na vida do cristão. Obrigada!

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