Por Jorge E. Maldonado

Apóstolo Paulo na casa de Áquila e Priscila, por J. Sadeler sobre a obra de Jodocus Winghe

O propósito deste artigo é considerar as diferentes formas nas quais se organizava a vida familiar nos tempos bíblicos, seus costumes e tradições. Esperamos que o exercício sirva como uma introdução à discussão teológica dos artigos que seguintes. É provável que o que chamamos hoje de “família”, tenha muito pouco a ver com as expressões culturais da época bíblica. Uma compreensão destas diferenças nos ajudará a retomar a tarefa sempre nova de encontrar nas Escrituras – em meio aos elementos culturais na qual esta foi escrita – os princípios e valores necessários para orientar nosso trabalho teológico e pastoral hoje em dia em nosso contexto.

O grupo social chamado família encontra-se presente em todas as culturas, desde a antiguidade até os dias atuais. Cientistas sociais que tem estudado os diferentes povos ao redor do mundo parecem concordar na observação de que em toda sociedade conhecida, quase cada pessoa vive submersa em uma rede de direitos e obrigações familiares¹. O termo descreve uma diversidade de realidades sociais, desde a rede externa de parentes, encontrada especialmente nas sociedades agrárias, até a família nuclear contemporânea e suas variações, peculiar das áreas urbanas e industrializadas do mundo.

As definições de família se forjam cultural e historicamente. Na parte norte-ocidental do mundo onde se tem experimentado por mais tempo os efeitos da industrialização, a família nuclear tende a ser normativa. Na parte sul do mundo, onde outros modos de produção e organização social coexistem e a sobrevivência depende em grande parte das redes de parentesco, o termo família tem um sentido mais amplo. Mesmo que todos tenhamos uma noção bastante universal e normativa.

O que distingue a família de outros sociais é sua funções: um lugar comum de residência, a satisfação de necessidades sexuais e afetivas, a unidade primária de cooperação econômica e a procriação e socialização de novas gerações. Entretanto, estas funções, tradicionalmente desempenhadas pela família, descrevem melhor a tribo, ao clã ou a família extensa. Historicamente, e esse é o caso das famílias na Bíblia, a raça humana existiu primeiramente em grupos sociais mais extensos que a família nuclear. Quando a convivência cresceu em sua complexidade, tribos e clãs deram lugar à família extensa e a um sem número de instituições sociais secundárias. A família nuclear é uma adaptação posterior. Isto não quer dizer que o núcleo constituído por homem, mulher e filhos não existia antes da era industrial, mas que não era considerado como família se estivesse apartado destas redes mais extensas e entretecidas de relações familiares. Hoje em dia se considera família tanto “a unidade social básica formada ao redor de dois ou mais adultos que vivem juntos na mesma casa e cooperam em atividades econômicas, sociais e protetoras e no cuidado dos filhos, próprios ou adotados”², como “a rede mais extensa de relações estabelecidas por matrimonio, nascimento ou adoção”³. Em todo caso as maneiras pelas quais estas relações se estabelecem, os direitos e obrigações determinados aos sexos, e o numero de pessoas que a foram diferem grandemente de um lugar ao outro de acordo com a cultura, classe social, religião e a região do mundo onde se vive.

Conhecer alguns dados sobre as famílias dos tempos bíblicos nos ajudará, por exemplo, a entendermos que muito do ensino da igreja acerca da família tem sido uma combinação indiscriminada dos conceitos de pessoa, casal e lar (ou casa). Com o reconhecimento alcançado hoje pela pessoa como indivíduo, com a crescente distinção entre casal e família, com a justa afirmação da mulher como pessoa diferente do homem e o controle sobre a procriação, nos encontramos diante de um processo inevitável e irreversível da clara distinção entre pessoa, casal, família e casa (como unidade – “household”4. Este processo, entretanto, não tem que ser visto com pessimismo. Pelo contrário, as famílias contemporâneas têm o potencial para desenvolver relações próximas mais justas e equitativas; a intimidade pode florescer a medida que as formas autoritárias desaparecem; a igualdade dos sexos pode prover um melhor sentido de identidade e apoio para as novas gerações; a procriação (ao ser considerada como opcional antes que essencial para a família) pode estar dotada de um sentido mais rico e pleno de realização e solidariedade humanas.

A família no Antigo Testamento

É uma tarefa impossível comprimir em uns poucos parágrafos a enorme variedade de expressões familiares e sua evolução ao longo de milhares de anos que cobre o Antigo Testamento. Durante este período ocorreram muitas mudanças. Abraão viveu uma vida seminômade. Seus descendentes, que se estabeleceram em Canaã, construíram cidades e interagiram com as pessoas da região. Quando decidiram ter um rei ao invés de juízes locais, experimentaram a prosperidade, mas também trabalhos forçados, impostos e a divisão entre ricos e pobres. Após a divisão do país em dois reinos, as invasões da Síria, Egito, Assíria e Babilônia, bem como os 70 anos de exílio e a seguir o controle político por parte da Pérsia, Grécia e Roma, imprimiram marcas profundas e induziram mudanças significativas na vida familiar das pessoas do Antigo Testamento.

Entretanto, é possível afirmar que a família foi de vital importância na organização das sociedades veterotestamentárias. “Sem dúvida que outros fatores estiveram presentes na formação das sociedades dos períodos mais remotos que vemos no Antigo Testamento, mas nenhum deles teve um papel mais importante que a família… Todos os assuntos públicos foram, até certo ponto, assuntos familiares; estavam regulados pelos anciãos, ou seja, os cabeças de família dos clãs”5.

No tempo da peregrinação de Israel pelo deserto sua estrutura se definiu. Uma tribo era formada por vários clãs, os quais por sua vez eram grupos de famílias unidas por laços consanguíneos (Josué 7.14-18). Nesta estrutura social Israel via a cada individuo como membro de uma família. Cada família por sua vez estava unida a outras famílias que formavam um clã. O clã, por sua vez, estava unido em grupos mais extensos, formando as tribos, de tal forma que todas a nação de Israel era, efetivamente, uma grande família de famílias.

A família no Antigo Testamento era definitivamente patriarcal. Um dos termos para designa-la era “casa paterna” (bet ab). As genealogias são sempre apresentadas através da linhagem paterna. O pai possuía sobre os filhos, inclusive os casados, se viviam com ele, e sobre suas mulheres, uma autoridade total, que antigamente chegava até ao direito de vida ou morte. A desobediência e a maldição aos pais eram castigadas com a morte (Ex 1.15; Lv 20.9; Pv 20.20). A medida que o sistema legal evoluiu, este direito do pai foi transferido para as cortes, mas em essência não mudou: diante da queixa de um pai, a corte geralmente pronunciava sentença de morte6.

Outro termo em hebraico usado no Antigo Testamento para família é “mishpahah”, que significa família, mas também clã, tribo, povo e descreve o grupo de pessoas que habitam em um mesmo lugar ou em várias aldeias, que tem interesses e deveres comuns e cujos membros são conscientes dos laços de sangue que os unem pelos quais se chamam de “irmãos” (I Samuel 20.29)7.

Ainda no Antigo Testamento utilizava-se a palavra “casa” (bet ou bayít)8. A palavra é utilizada para denotar vivenda e, figurativamente, o lugar onde Jeová habita (especialmente com referência ao tabernáculo ou ao templo. Também significa família, descendência e até um povo inteiro, como a “casa de Israel” (Js 2.15 e Ez 20.40). A palavra casa aparece mais de duas mil vezes em toda a Bíblia9.

Os patriarcas Hebreus seguiam os costumes de seus vizinhos no que diz respeito a ter mais de uma esposa, ou seja, eram polígamos. Uma família daqueles tempos, frequentemente, incluía o esposo, suas esposas e seus filhos, suas concubinas e seus filhos, os filhos casados, as noras, os netos, escravos de ambos os sexos e seus filhos nascidos sob este teto, os estrangeiros residentes no mesmo prédio, as viúvas, os órgãos e todos quantos se abrigavam sob a proteção do chefe de família10. Quando Ló foi feito prisioneiro pelos reis de Canaã, Abraão “juntou aos criados de confiança que haviam nascido em sua casa, que eram 318 homens ao todo” (Gn 14.14) e foi resgatar seu sobrinho.

Um termo importante para nossa reflexão é “pai” (‘ab)11. Foi usado para referir-se não somente ao pai, mas também aplicou-se a homens de muito respeito, sem a necessidade de parentesco algum. O pai cumpria obrigações sacerdotais. Religião e família estavam entretecidos com as mesmas fibras. A comunidade de adoração básica que mantinha a coesão social da época era a família. Da mesma forma que outros grupos humanos ao seu redor, entre os hebreus o pai da casa era também o sacerdote que vigiava as relações entre as pessoas de sua casa e Deus (Jó 1.5). Isto torna-se muito mais evidente após o Êxodo, quando o pai ocupa o lugar predominante no ritual da Páscoa (Ex 12-13.8). Os membros da família estavam sob a estrita obrigação de reunir-se no santuário familiar (I Sm 20.29)12. Quem cumpria esta função religiosa em lugar de um pai, adquiria a mesma dignidade. Assim Moisés foi chamado “pai” dos filhos de Arão (Nm 3.1) O profeta era chamado “pai” por seus discípulos (II Reis 2.12). Mais tarde os rabinos também foram chamados de pais13.

O povo de Israel também usou a palavra “pai” para referir-se a Deus. A Bíblia a usa para fazer referência à relação de Deus com seu povo (Dt 14.1; Isaías 64.8; Pv 3.12). Na relação de Jeová com o povo de Israel, este é chamado filho e filha e às vezes esposa (Oséias 11.1; Jr 3.22; 31.18-20; Isaías 54.6). Em Isaías 66.13 a imagem análoga para Jeová é de uma mãe e em Isaías 54.5 é “marido”.

A condição da mulher

Apesar das mulheres fazerem grande parte dos trabalhos duros da casa e do campo, tinham uma posição pouco privilegiada, tanto na sociedade como na família. As solteiras estavam sob a tutela de seu pai ou de um guardião. Ao que tudo indica elas eram tratadas mais como prendas de valor, que eram “compradas” por seus futuros esposos e, inclusive, vendidas como escravas (Ex 21.7). Por norma, somente os filhos varões tinham direito à herança e o filho mais velho tinha direito a uma dupla porção da propriedade de seu pai. Somente se não houvesse varões na família é que as filhas podiam herdar algo de seus pais. Se uma família não tivesse filhos, a propriedade passava ao parente varão mais próximo14.

No compromisso nupcial (ato de noivado, comprometendo-se ao casamento), de dois jovens – um contrato que era feito diante de duas testemunhas – o casal trocava anéis ou braceletes. Uma soma em dinheiro denominada mohar, tinha que ser paga pelo noivo ou sua família ao pai da noiva. Às vezes esta importância podia ser paga em forma de trabalho (Gn 29.15-30). O pai parece que só podia gastar os dividendos deste capital, sendo que o “mohar” devia ser devolvido as filhas quando o pai morresse ou se elas enviuvassem. Labão parece haver quebrado este costume (Gn 31.15). O pai da moça, em troca, devia lhe dar um dote que podia consistir-se de serventes, presentes ou terras. O matrimônio era um evento civil (familiar e comunal) antes que religioso. A boda celebrava-se quando o noivo tivesse sua casa pronta. Com seus amigos ia à casa da noiva, onde ela o esperava ataviada com seu vestido especial para a ocasião e com um punhado de moedas que ele lhe havia entregue anteriormente. Dali o noivo a levava para sua nova casa ou para a casa dos pais, onde comemorava-se a festa com os convidados. No trajeto, amigos, vizinhos e convidados formavam um cortejo com músicas e danças15.

No casamento no Antigo Testamento, o marido era o senhor (baal) de sua esposa. Por meio do matrimônio a mulher passava a ser propriedade do esposo. As mulheres eram valorizadas como mães em potencial, destinadas a dar ao clã o mais precioso dos dons: filhos, especialmente varões. Disto resulta que a esterilidade, geralmente atribuída a uma falta da esposa, era um estigma e considerada como um castigo de Deus (Gn 3.1-2; I Sm 1.6). Somente quando a mulher chegava a ser mãe de um filho varão, é que obtinha sua completa dignidade no lar (Gn 16.4; 30.1). O não ter um filho varão era uma carga pesada para o esposo; sua casa (sua descendência) estava ameaçada de extinção; as filhas se casavam e iam embora; somente os varões podiam encarregar-se do culto familiar, de discutir a lei e de portar armas. A falta de filhos em um casamento podia conduzir a um divórcio ou à poligamia. Entre os hebreus, assim como entre os demais povos da antiguidade, ter uma prole numerosa era um desejo bastante generalizado. Uma benção muito apreciada tinha que ver com a abundância de filhos (Gn 24.60), os quais eram considerados, conforme o salmista, como “setas na mão do valente”. Mais tarde, quando adotou-se a forma mais sedentária de vida, as mulheres passaram a ser apreciadas também por sua eficiência no trabalho doméstico (Pv 31.11-30).

É interessante notar que, apesar de tratar-se de uma sociedade patriarcal, muitos textos bíblicos mencionam o pai e a mãe num mesmo plano. Um primeiro exemplo é Gênesis 1, onde os dois são feitos à imagem de Deus, ambos recebem o mandato cultural de procriar e senhorear a terra. Outro exemplo é o quinto mandamento, que fala sobre a honra que os filhos devem a ambos os progenitores (Ex 20.12; Dt 5.1-6). O livro de Provérbios fala várias vezes da necessidade de respeitar e obedecer aos ensinos do pai e da mãe (Provérbios 1.8; 6.20). Também em Israel houve mulheres que se sobressaíram, como Débora, conhecida como “mãe em Israel” (Juízes 5.7), obviamente um título de muita honra. Falar mal do pai ou caluniar a mãe era castigado com a morte.

Nos escritos dos profetas se observa que a família, chamada a ser o altar da fé e da instrução espiritual, se convertia às vezes no foco de desorientação (Jr 9.13-14; Amós 2.4). O deterioramento da família era um poderoso fator de lembrança para voltar-se para Deus (Miquéias 7.6-7). Vários dos profetas levantaram suas vozes para fazer o povo voltar a uma relação familiar mais justa e satisfatória, como parte de seu compromisso com Deus. Oséias foi um testemunho vivo da preocupação de Deus pela monogamia. Miquéias empenhou-se pelo amor na família e o respeito pelos progenitores. Isaías proclamou a fidelidade conjugal e Yahweh, o esposo, para com Israel. Ezequiel continuou favorecendo o casamento monogâmico e o reconhecimento de uma posição mais elevada para a mulher, tanto na família como na sociedade.

Com o passar dos tempos, a estrutura da família em Israel evoluiu. A vida urbana trouxe mudanças. O tipo de vida em aldeias e cidades restringiu o número de pessoas que podiam viver sob um mesmo teto. Diminuiu o número de escravos em cada casa. O juízo de um filho rebelde passou para as mãos dos anciãos da cidade (Dt 21.18-21). É precisamente a época pós-exílio quando a família judia parece-nos mais humanizadas, segundo os livros sapiensais, onde o amor marital e a educação dos filhos são preocupações constantes e onde se supõe a monogamia como forma corrente de relação conjugal16.

A família nos tempos de Jesus

A primeira página do Novo Testamento posiciona a Jesus, o Messias, como membro da família de Davi e de Abraão (Mateus 1.1). O culminar e cumprimento das promessas do Pacto feitas no Antigo Testamento estão na pessoa e obra de Jesus Cristo, nascido na trajetória de uma família (Mateus 1.1; Lucas 3.23; Atos 3.25-30; Romanos 4.13; Gálatas 3.6-7, 16). Todos estes textos são uma continuação da forma na qual o Antigo Testamento se aproxima do cumprimento das promessas no contexto da família. De modo que, tanto no Antigo como no Novo Testamento, as declarações acerca do matrimonio e da família estão ligadas com a mensagem total das Escrituras que dão testemunho de Cristo (João 5.39).

Também o Novo Testamento usa o termo “casa” (oikos em grego) para descrever a família17. Fala-se por exemplo, da “casa de Israel” (Mateus 10.6; Atos 2.36; Hebreus 8.8-10) e da “casa de Davi” (Lucas 1.27, 69; 2.4) para indicar a linhagem familiar.

As mulheres, seguindo a tradição do Antigo Testamento, tampouco eram consideradas “iguais” aos homens. A mulher estava obrigada a obedecer a seu marido como a um dono, e esta obediência era um dever religioso. Além disso estavam excluídas da vida pública. Joaquim Jeremias escreve: “As filhas, na casa paterna, deviam andar atrás dos rapazes; sua formação se limitava à aprendizagem dos trabalhos domésticos, cozinhar, costurar; cuidar dos irmãos e irmãs menores. No que diz respeito ao pai, tinham com certeza os mesmos deveres que os filhos homens, mas não tinham os mesmos direitos; com respeito à herança, por exemplo, os filhos homens e seus descendentes precediam as filhas mulheres. Antes de seu casamento estavam totalmente sob o poder de seu pai18.

Tanto os direitos como os deveres religiosos das mulheres estavam limitados. As mulheres só podiam entrar no templo até o átrio dos gentios e das mulheres. Haviam rabinos que sustentavam que não se devia ensinar o Torah (o livro religiosos dos judeus) às mulheres. As escolas onde, além de ensinar-se a ler e a escrever, ensinava-se a lei, eram exclusivamente para os varões. Somente algumas filhas de famílias de elevado grau social podiam estudar. Nas sinagogas havia uma separação entre homens e mulheres. No culto a mulher somente escutava. O ensino era proibido a ela. Em casa a mulher não podia dar graças pela comida. Em geral a mulher, na cultura judia esteve segregada a um segundo plano, similar ao das mulheres das culturas vizinhas da época19.

Nos tempos do Novo Testamento já imperavam a monogamia. O esposo/pai era o chefe da família. A família incluía aos pais e os filhos, a parentes e, entre os mais abastados, aos servos (Ef 5.21.6-9).

Como se desenvolveu o ministério de Jesus neste ambiente? Jesus validou a instituição familiar. Ele mesmo chegou ao mundo através de uma família onde além de pais, teve irmãos e irmãs (Mateus 13.55-57). Jesus experimentou uma infância de crescimento integral, tanto físico como intelectual, social e espiritual (Lucas 2.52). Como adulto, ainda que como rabino itinerante, sem lar fixo (Lucas 9.58), soube desfrutar da hospitalidade de um lar (Mateus 8.14; Lucas 10.38-42). Seu primeiro milagre foi realizado em um casamento (João 2.12). Fez muitos outros milagres que demonstram sua preocupação com a família (Mateus 8.14-15; Lucas 7.12-16; João 11.5-44). Ensinou-nos a chamar a Deus de “Pai Nosso” (Mateus 6.9) e o apresentou como o pai que esperava alerta o retorno do filho pródigo (Lucas 15.11-32). Na cruz preocupou-se com a segurança de sua mãe, encarregando o discípulo que ele amava de cuidar-lhe (João 19.26). Parece que não somente sua mãe, mas também seus irmãos estavam entre os discípulos no aposento depois de sua ascensão (Atos 1.14).

Ainda que Jesus questionasse o conceito de que a descendência biológica judia era suficiente para a membresia no Reino de Deus (Mateus 12.48-50), muito de seu ministério público esteve voltado para a família. Ensinou enfaticamente que o quarto mandamento, de honrar pai e mãe, permanecia válido, acima até das obrigações culturais (Mateus 15.3-6; Marcos 7.10-13). Restabeleceu claramente a igualdade de direitos entre o homem e a mulher no matrimonio ao negar o direito de repúdio e a poligamia (Mateus 19.3-8; Marcos 10.2-9), privilégios patriarcais geralmente reconhecidos no mundo antigo20. Em seu trato com as mulheres e as crianças, gente de segunda categoria naquela época, Jesus não seguiu os costumes de seus contemporâneos. Segundo Jesus, as crianças tinham um alto valor como membros de seu Reino (Marcos 10.13-16). Entre suas palavras de maior impacto estão as que têm a ver com atitudes e ações de adultos que fazem tropeçar a um pequenino (Mateus 19.2-6). Discutiu temas espirituais com mulheres (Lucas 10.38-42; João 4; João 11). Isto representava um acontecimento sem, parâmetros na época. Jesus não somente colocou a mulher num patamar mais elevado, mas a colocou diante de Deus em igualdade ao homem21.

O apóstolo Paulo e os demais escritores do Novo Testamento estavam familiarizados com os padrões de autoridade familiar que prevaleciam no ambiente de seu tempo. Aparentemente aceitaram as normas existentes e não advogaram por mudanças na estrutura social. Todavia por meio de seus ensinos e suas ações, fizeram evidente sua convicção a respeito do valor das mulheres e das crianças. Em um ambiente no qual os judeus faziam suas orações matinais dando graças a Deus por não terem nascido nem gentios, nem mulheres, nem escravos, os apóstolos falavam com as mulheres, davam-lhes instruções a respeito do Reino de Deus, ministração às suas necessidades e um espaço na obra do Reino de Deus (Atos 1.14; 16.13-14 etc).

A estrutura social patriarcal não foi desconsiderada por Jesus e os apóstolos. A estrutura familiar daquela época, como a comunidade de pessoas relacionadas por vínculos de matrimonio e parentesco e regidas pela autoridade do pai22 foi reconhecida e colocada a serviço do Reino de Deus e da edificação da Igreja no Novo Testamento. O livro de Atos narra casos de famílias inteiras que aceitaram o Evangelho e foram batizadas (Atos 10.24-48; 16.31; 18.8). Isto dá testemunhos não só da unidade familiar dos que se convertiam ao Senhor, mas também que o pai de família era o porta-voz de toda sua casa diante de Deus e da comunidade (João 4.53; Lucas 19.9; Filemon 1-2).

Alguns dos apóstolos eram homens de família (I Co 9.5). Ainda que Paulo preferiu permanecer só por causa do Evangelho, honrou o casamento de outros (I Co 7.7-10; I Tm 4.1-5). Aconselhou às esposas cristãs a permanecerem unidas a seus esposos, mesmo que estes não fossem crentes (I Co 7.10-16). O comportamento da família foi uma das maneiras de reconhecer presbíteros e diáconos (I Tm 3.1-13; Tito 1.5-7). A hospitalidade nos lares cristãos era uma virtude muito apreciada (Rm 12.13; I Pe 4.9). As relações cristãs nos círculos familiares dos crentes era um poderoso testemunho aos não convertidos (I Pe 3.1-7). Na família, os frutos do Espírito como amor, perdão, gozo, paz, benignidade, domínio próprio (Gálatas 5.22), tinham a oportunidade de tornar-se realidades concretas e não somente meros conceitos abstratos.

Isto tudo indica que o Evangelho não arrancou bruscamente aos primeiros cristãos de seu sistema habitual de família, nem os isolou inutilmente da sociedade na qual vivam, antes reconheceu os valores da família (da mesma forma que reconheceu os valores da cultura) quando estes correspondiam aos princípios determinados por Deus. Ao mesmo tempo, o evangelho avaliou e julgou tanto o ambiente social como o familiar, quando estes não estavam de acordo com a vontade de Deus.

Além de tudo isto, o vocabulário que o Novo Testamento usa para referir-se à redenção é tomado das relações familiares. Por crer em Jesus Cristo, somos feitos filhos do Pai celeste (João 1.11-13). Ao sermos partes da Igreja, estamos na comunidade de irmãos, na qual Cristo é o “primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8.29). Uma evidencia de pertencer à “família de Deus” (Ef 2.19; Gálatas 6.10) é a demonstração do amor na comunidade dos irmãos (I João 3.14-16).

Jorge E. Maldonado é pastor, sociólogo e terapeuta familiar. É membro fundador da Asociacion Latino-americana de Asesoramiento y Pastoral Familiar EIRENE. Trabalha atualmente em Genebra como educador familiar e na área de evangelização no Conselho Mundial de Igrejas.

Texto originalmente publicado no livro Fundamentos Bíblico-Teológico do Casamento e da Família, Jorge Maldonado (org.), São Paulo: Eirene.

Referências bibliográficas

  1. William J. Goode, The Family, Englewood-Cliffg; Pertince Hill, 1976, p. 1. Ver também Berta Corredor, La Familia en América Latina, Bogotá, Centro de Investigaciones Sociales, 1982. Um trabalho mais atual e transcultural é o de Wan-Shing Tseng e Jin Heu, Culture and Family, Problems and Therapy, New York, The Haworth Press, 1991.
  2. Bernard Faber, “Family” en Enciclopédia Americana, International Edition, New York, Americana Corporation, 1982, vol II, p. 218.
  3. Jorge E. Maldonado, “Family” em Dictionary of Ecumenical Movement, editado por Nicholas Lossky, José Miguez-Bonino e outros, Genebra, WCC Publications, 1991, p. 415.
  4. William Everestt, Blessed be the Bond: Christian Perspectivas on Marriage and Family, Philadelphia, fortress, 1985.
  5. T. K. Cheyne e J. Shuterland-Black, editores, Enciclopédia Bíblica, Londres, Adam and Charles Black, 1914, p. 1498
  6. Ibid.
  7. Rolando De Vaux, Instituiciones del Antigo Testamento, Barcelona, Editorial Herder, 1976, p. 50-51.
  8. C. Caverno, “Family”, The International Standart Bible Encyclopedia, vol. II, Grand Rapids, Michigan, Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1960, p. 1094; e Arch E. Dichie, “House”, ISBE, vol III, p. 1434
  9. Roy B. Wyatt, “Casa”, Diccionario ilustrado de la Biblia, Miami, Florida, Editorial Caribe, 1974, p. 106-107.
  10. Rolando de Vaux, op. Cit. P. 50-51.
  11. Philip Wendell Crannel, “Father”, The International Standart Bible Encyclopedia, Vol. II, Grand Rapids, Michigan, Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1960, p. 1100.
  12. T.K. Cheyne y J. Sutherland-Black, op. cit., p. 1100
  13. Gottfried Quell, “The Father Concept in the Old Testament”, Theological Dictionary of the New Testament, vol. V, Grand Rapids, Michigan, WM. B. Eerdmans Publishing Co., 1967, p. 969-972.
  14. Cláudio Gancho, “Família”, Enciclopédia de la Bíblia, vol. III, 2ª ed. Barcelona, Ediciones Garriga S. A., 1969, p. 4431-433
  15. Pat Alexander, org. editor, Eerdmans Family Enciclopédia of the Bible, Grand-Rapids; W. B. Eerdmans, 1978, p. 196.
  16. Pat Alexander, op. cit., p. 198.
  17. Gerhard Kittel, Theological Dictionary of the New Testament, Grand-Rapids, Eerdmans, 1967, citado por Dorothy Flory de Quijada en la Familia en la Mision de Dios, Quito, EIRENE, 1988.
  18. Joaquim Jeremias, Jerusalém en Tiempos de Jesus, Madrid, Ediciones Cristianidad, 1969, p. 380-384.
  19. Ibid.
  20. Haring, Bernhard., El Matrimonio en Nuestro Tiempo, Editorial Herder. Barcelona, 1973, p. 128.
  21. Joaquim Jeremias, op. Cit., p. 387.
  22. The Interpreters Dictionary of the Bible, Nashville, Tenesse, Abingdon Press, 1962, Art. “Family”.
  1. A graça e a paz do Senhor jesus!
    Apreciei muitíssimo a leitura desse estudo maravilhoso. gostaria de saber mais, sou psicóloga e cristã, e recebo muitos casos de evangélicos com problemas na vida conjugal e familiar. haveria possibilidade de fazer um curso, com Jorge E. Maldonado ou receber materiais?
    grata vanuza M Marinho

  2. Fabio evangelista hilario

    Gostei da abordagem, mas discordo quando e passada a visão de monogamia como superior pois a lei de Deus e perfeita e regulamenta a poliginia , se isto fosse algo degradante que ofende a mulher ou a família jamais seria regulamentado , a injustiça com as mulheres não encontra apoio na lei . e sim no afastamento de um intendimento bíblico por parte do povo de israel, nos lemos a monogamia como um ideal por causa da visão romanizada que o cristianismo abraçou com relação ao casamento , e que na minha opinião prejudica muito a sustentabilidade da família e a diferença entre os sexos . homens e mulheres tem o mesmo valor como seres humanos ma tem funções e obrigações diferentes no casamento e construção familiar , se a monogamia fosse um ideal a lei teria uma nítida contradição eu repudio esta visão .

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