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Crédito: Lissânder Dias

Julia E. M. Cameron, 62 anos, é uma inglesa sorridente que ama livros. Na verdade, ela acredita que, mais do que entretenimento, a literatura pode ser usada para diminuir abismos e para ensinar e encorajar a Igreja na missão de Deus. Residente em Oxford, professou sua fé por meio do Ministério de Billy Graham. Durante anos atuou na International Fellowship of Evangelical Students (IFES) e na OMF International. Julia edita livros e é autora de três, entre os quais um sobre John Stott para crianças e outro sobre Frances Whitehead, a fiel secretária de Stott por quase toda a vida ministerial do teólogo britânico (John Stott’s Right Hand –  the untold story of Frances Whitehead). Julia começou escrevendo notas obituárias para a imprensa do Reino Unido e hoje ocupa o cargo de Diretora de Publicações do Movimento de Lausanne. Confira a seguir a versão completa da entrevista que Cameron concedeu à revista Ultimato 362.

 

Qual é o seu papel em Lausanne como diretora de publicações? E quais os planos do movimento nesta área?

Chefio a publicação de livros e atuo como editora sênior. Produzimos publicações tanto curtas como extensas e servimos a Igreja em 28 línguas. Nossos livros menores mais divulgados são de autores consagrados como John Stott, Ajith Fernando e James Philip. Para o meio acadêmico, estamos publicando livros de consultas globais, as quais reúnem algumas das mais brilhantes mentes evangélicas para trabalhar temas chaves identificados em O Compromisso da Cidade do Cabo.

Estamos estabelecendo um novo paradigma para as publicações Lausanne. Temos comitês editoriais regionais ao redor do mundo, o que implica decisões tomadas por líderes que entendem o contexto local melhor do que eu ou outros de fora entenderíamos.

 

Como vocês pensam em alcançar as igrejas locais e que iniciativas esperam desenvolver para interagir, de forma dinâmica, com elas?

Nós consideramos muito a igreja local e alguns de nossos títulos menores já são usados para servir congregações locais em diferentes culturas, inclusive no coração dos mundos muçulmano, hindu e budista. Para mim isso é um teste decisivo do valor daquilo que produzimos. Afinal, se o nosso ministério de publicações não tiver utilidade em âmbito local, também não será útil em âmbito global.

 

As publicações têm o poder de manter a memória dos conteúdos, resoluções, conceitos. Em português nos beneficiamos muito da publicação do Pacto de Lausanne e, mais recentemente, de O Compromisso da Cidade do Cabo. Você é uma espécie de guardiã das memórias do Movimento de Lausanne. Falta à Igreja valorizar mais sua própria história? O que perdemos com isso?

Obrigada por essa importante pergunta. Ela se relaciona com os dois aspectos de Lausanne. Vou responder em duas partes: de fato, é a palavra publicada, como você disse, que preserva o conteúdo. Eu sinto um grande senso de responsabilidade por garantir que seja assim, especialmente porque [o Movimento de] Lausanne é guardião de riquezas raras. John Stott uma vez descreveu o movimento de forma muito bonita como sendo “um compartilhar de presentes”, como se a igreja de cada continente trouxesse o seu presente para a mesa para compartilhar. Por isso é tão importante publicar materiais dos nossos encontros e nos esforçar para disponibilizá-los em diversas línguas.

O segundo objetivo é preservar a história. A igreja seria muito mais pobre se não aprendesse com sua própria história ao longo dos séculos e das décadas. Por quarenta anos o Movimento de Lausanne, devido ao seu grande alcance, tem sido um instrumento catalizador de mudanças em diversas frentes.

Eu acredito que líderes da América Latina diriam que o Pacto de Lausanne de 1974 mudou o entendimento da essência da missão. Estima-se que possivelmente 70% das organizações cristãs na América Latina mantenham o Pacto de Lausanne em suas bases de fé. Mais especificamente, sabemos de duas grandes igrejas na América Latina em que a teologia da prosperidade distorcia o evangelho e cujos pastores têm mudado de percepção por terem ouvido a apresentação de Femi Adeleye sobre o tema no Terceiro Congresso de Lausanne.

O Compromisso da Cidade do Cabo está aos poucos influenciando as prioridades de igrejas e agências missionárias, trazendo assim novos assuntos para as pautas de reunião. São fatos notáveis na vida da Igreja que devem ser preservados.

 

Você acha que a Igreja tem lido satisfatoriamente? Há coisas e pessoas sobre as quais a Igreja precisa ler ou saber mais?

Eu tenho visto líderes cristãos do Sul Global mergulhando em estandes de livros em eventos da IFES e de Lausanne; com certeza há uma sede de livros em algumas culturas. Infelizmente há muitas publicações sem peso que não servem bem aos leitores. Sempre defendi que cristãos leiam boas biografias para aprender mais sobre a vida de fé e as dificuldades da fé de grandes homens e mulheres de Deus; que leiam textos doutrinários para construir uma clara definição de suas crenças; e que leiam sobre a missão mundial – seja com foco em um campo específico, seja com interesse geral. Aqueles que servem em profissões seculares talvez se beneficiariam de ajuda para adquirir uma visão bíblica sobre seu trabalho. Também sugiro que os cristãos adotem uma obra favorita para distribuírem de presente. No meu caso, adotei o belo e profundo livrinho de James Philip The Glory of the Cross – Exploring the Meaning of the Death of Christ [A glória da cruz – explorando o significado da morte de Cristo]. Carrego alguns exemplares comigo quando viajo.

 

Você tem um olhar privilegiado da igreja global. Como a Igreja está hoje? Quais são suas expectativas? Quais são os maiores desafios que a Igreja deve enfrentar nos próximos anos?

Devo ressaltar que grande parte da minha visão passa pelos prismas de Lausanne e da IFES. Ao examinar alguns líderes mais jovens muito especiais, eu tenho esperança. Mas também sei que alguns dos líderes de igrejas mais experientes começaram bem, mas depois relaxaram, de forma que nunca devemos ser complacentes. Quanto aos maiores desafios: Controvérsias sobre gênero; a disseminação do islamismo; migrações em massa; poucas vozes cristãs no meio acadêmico que dialogam com o dia a dia do povo; menos motivação para leituras com profundidade, o que diminui a habilidade para uma defesa forte. Também fico atenta às vis perseguições que pairam sobre tantos irmãos e irmãs nossos, aqueles de quem o mundo não é digno. Seria muita inocência de nossa parte não perceber que isso vai piorar.

 

Qual foi sua motivação principal para contar a história de Frances Whitehead?

Pieter Kwant me convidou a escrevê-la. Após algumas pesquisas e conversas com Frances, descobri que o próprio John Stott tinha esperanças de que a história fosse contada um dia. A parceria entre “tio John e tia Frances”, como eram conhecidos mundo afora, era única e de grande valor para a Igreja. A rara bagagem familiar de Frances, sua mente esperta e seu grande comprometimento com Cristo foram fatores que tornaram possível o ministério de Stott. O trabalho dele não seria nem metade tão bem-sucedido sem ela. A história dos dois juntos é um testemunho tocante da providência de Deus, uma história que precisa ser preservada.

 

Você escreveu outros livros? Eles também são biográficos ou tratam de outras temáticas?

Escrevi alguns outros livros, como The Humble Leader [O líder humilde], uma biografia de John Stott para crianças e Silhouettes and Skeletons [Silhuetas e esqueletos], um pequeno livro sobre Charles Simeon, contemporâneo de William Wilberforce e um colosso na história evangélica. Também editei muitos outros livros, o que me dá a mesma satisfação. Onde há conteúdo precioso que merece atenção para se tornar mais claro, eu amo trabalhar ali. Em 2008 lancei uma modesta série de pequenos livros de grandes autores, os quais foram publicados em 24 línguas. Assim, entendo que editar é meu chamado tanto quanto o é escrever.

 

Frances Whitehead foi descoberta por John Stott. Houve algum líder que descobriu seus dons e talentos e a encorajou a assumir essas responsabilidades?

Sim, Edward England, da editora Hodder e Stoughton. Tudo aconteceu de um modo não esperado. Eu me lembro do culto fúnebre de uma talentosa escritora, Phyllis Thompson, que, durante uma geração e por meio de uns cinquenta livros, trouxe o tema da missão mundial para dentro dos lares de dezenas de milhares de cristãos. Ela se tornara uma amiga querida e eu havia estado com ela no momento de sua morte. Seu editor, Edward England, fez um discurso no culto fúnebre em Londres sobre a dedicação e o ministério dela, como eu mesma já havia feito no velório. Depois ele me disse: “Talvez você devesse tomar esse manto agora, Julia”. Essa declaração súbita me pegou de surpresa. Mas resolvi levá-la a sério. Naquela época eu era a responsável pela área de publicações da OMF. De uma forma ou de outra, permaneci ativa em empreitadas editoriais desde então. E, pela graça de Deus, acredito que esse privilégio vai continuar.

 

Nesse desafio de alcançar as igrejas locais, que iniciativas vocês estão considerando para atingir as igrejas mais pobres?

Sempre haverá uma ideia de que livros só alcançam os escolarizados e, historicamente, o Movimento de Lausanne tem sido uma rede de líderes e pessoas influentes. Mas em termos de conteúdo, é vital que os líderes se envolvam com os problemas da pobreza e busquem sua solução a longo prazo. Um pequeno livro que já foi publicado em várias edições ao redor do mundo é Light, Salt and the World of Business – Good practice can change nations (Luz, sal e o mundo dos negócios – Boas práticas podem mudar nações), de Fred Catherwood, pois sabe-se que a pobreza é frequentemente causada por corrupção sistêmica. Nossa próxima grande publicação, que será lançada em 2017, é resultado da consulta global que aconteceu em Atibaia, São Paulo. Trata-se de um livro sobre o que é comumente chamado de teologia da prosperidade e como esse “evangelho” insidioso, como sabemos, tem um grande apelo a igrejas pobres. Acreditamos que esse livro ajudará igrejas a perceber o que esse “evangelho” realmente é.

 

Com o avanço das novas tecnologias e redes sociais, a experiência da leitura ganhou novas opções. Isso é bom ou ruim na missão de edificar e ensinar a Igreja?

O importante é que os cristãos que querem crescer continuem lendo. Nosso conteúdo sempre será disponibilizado no Kindle ou no site lausanne.org. Mas não nos esqueçamos dos livros impressos. São estes que são passados adiante, comentados e emprestados a amigos.

 

Um movimento mundial e plural como Lausanne tem o gigantesco desafio de zelar pela identidade das organizações que a ele se ligam, ao mesmo tempo que deve respeitar a diversidade de contextos tão diferentes. Como lidar com este dilema, sem deixar de ser relevante globalmente?

Alguns dos mais importantes agentes no início do Movimento de Lausanne foram pessoas de países “não ocidentais”, como Samuel Escobar e René Padilla. Por outro lado, a influência de John Stott mostrou que todas as culturas são respeitadas. A IFES [União Internacional de Estudantes Evangélicos, sigla em inglês] é uma forte parceira em muitos países, e o seu comprometimento com a liderança nacional também tem reforçado as raízes nacionais do Movimento de Lausanne. Houve ocasiões em que o número de representantes de países “ocidentais” em comitês centrais foi maior do que o de países “não ocidentais”, e é importante garantir que isso não se repita. Lindsay Brown, ex-secretário geral da IFES, recentemente passou a responsabilidade para Las Newman (da Jamaica) como diretor associado global. Ambos têm profundas raízes na IFES e são comprometidos com esse princípio [de respeito cultural].

 

Lausanne planeja alguma comemoração a propósito dos 500 anos da Reforma Protestante?

Sim, temos uma série de encontros planejados para junho de 2017, na Alemanha, com pensadores líderes sobre missão mundial. O plano é estudar como dar continuidade ao trabalho para ver a verdade de Cristo conhecida entre todos os povos, línguas, tribos e nações.

 

O Movimento de Lausanne tem investido muito nos jovens líderes. Um exemplo é a realização do Encontro de Jovens Líderes, em Jacarta, na Indonésia. Qual é a força da juventude na Igreja global? Como valorizá-la sem ignorar os mais velhos? Como estimular a intergeracionalidade?

Os cristãos têm de ser contraculturais nessa e em muitas áreas. O modelo bíblico é o mais velho ensinando o mais novo, e queremos manter assim. Nana Yaw Offei-Awuku (de Ghana) lidera uma nova iniciativa que chamamos de YLGen (Geração de Líderes mais Jovens, sigla em inglês), lançada no encontro de Jacarta. Seu objetivo é atrair pessoas da geração mais nova, equipá-las, treiná-las, incorporá-las nas redes temáticas e oferecer-lhes mentores caso queiram.

 

Há dificuldades próprias de ser uma líder global mulher? Quais?

Eu evito usar o termo “líder global”, pois os únicos realmente “líderes globais” foram Billy Graham e John Stott. Certamente em algumas culturas a voz de um homem tem mais autoridade do que a de uma mulher, mas em meu pequeno papel no mundo de publicações não tenho tido dificuldades.

 

Você tem estudado o movimento missionário feminino? Qual tem sido o papel das mulheres no avanço da “missão de Deus”?

Não tenho feito estudos específicos sobre mulheres, mas muitos nomes vêm prontamente à minha mente – mulheres cujas histórias precisam ser recontadas para novas gerações. Lembro-me, por exemplo, do lendário trio da China Inland Mission (hoje OMF Internacional), três mulheres de mente extraordinária que atravessaram o deserto de Gobi cinco vezes como evangelistas itinerantes. Também, já em nosso tempo e num contexto totalmente diferente, temos as perseverantes assistentes pessoais de Billy Graham, Joni Eareckson Tada e George Verwer. Elas, assim como Frances Whitehead, possibilitaram o ministério de seus chefes através de seus talentos, dedicação e décadas de serviço em conjunto.

 

[Traduzido por Josué Bastos]

 

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