Esperançar é ver a terra ser machucada pela chuva, mas saber que são aquelas mesmas gotas que lhe revelam os seus maiores tesouros e brilhos, e que lhe deixam limpa. Esperançar é ver o lavrador entregar seu bem mais preciso à morte: suas sementes. Sabe ele que reter tal bem o privaria de tesouros maiores numa futura colheita. Esperançar é ser um sonhador que entrega seu sonho. Pois, do sonho que não se entrega, do sonho que não se abandona, que não se doa à terra e às circunstâncias e intempéries da vida, não se conhecerão seus frutos. O sonho não entregue à morte, tal qual a semente do lavrador, não gera viva realidade.

Esperançar é crer firmemente que o tempo não cura nada. Esperançar é crer que a cura vem do escorrer da vida que nos põe cara a cara com novos desafios, novos rumos, novos problemas, novas paixões, novos ódios, novos traçados e diferentes cores que nos fazem ver que os velhos problemas são apenas uma parte de nós, um verso sem rima em meio a tantos outros versos ritmados, alegóricos, assonantes, belos, intensos. Esperançar é permitir que o nosso coração cresça em diferentes direções e ardentemente de modo que os problemas de outrora vão sendo fagocitados pelas novas venturas da alma.

Esperançar é conseguir romper a barreira do “ser” vítima e perceber que é preciso tirar a dor do isolamento individualista, métrico e ritmado. Esperançar é entender que nós, sujeitos e co-autores da nossa própria história, somos maiores que a nossas dores e cicatrizes. Esperançar é saber que a dor é minha, e não eu dela. Esperançar é entender e viver a verdade de que a dor não constitui o centro do universo, e isso implica reconhecer e aceitar que o mundo não pára um momento para me assistir e me velar. Esperançar é acreditar que a vida prossegue e é preciso desprender-se de si mesmo e olhar em volta, e ver o nu, o cansado, o abatido, o desabrigado, o desesperançado que precisa de alento. Esperançar é doar-se.

Esperançar é conseguir perdoar a quem mais nos feriu, e, ao mesmo tempo, ser honesto com o nosso coração e permitir-se chorar. O choro da esperança é aquele da dor, o inevitável. O choro do sofrimento, porém, que traz angústia, pois esse é opcional de quem o carrega. Esperançar é ainda conseguir ir mais longe ao ser capaz de ser grato pelos ferimentos sofridos, não num sentimento masoquista, mas num sentimento de conformação e contemplação. Conformação com a verdade de que em nossas vidas algumas pessoas foram como uma lixa dura que lapidou a nossa pedra. Contemplação pela beleza daqueles que foram o pano macio que poliu essa mesma pedra, e que por diversas outras vezes foram a água que lavou e revelou-lhe o brilho. Esperançar é agradecer à quem foi nosso esteio e porto seguro nos momentos em que a nossa pedra caiu e quebrou-se no chão, e alguém, pacientemente, tomou cada pedaço e ajudou-nos a ser um lindo mosaico multifacetado de pedras que vão se quebrando e se achando no caminho da vida.

Esperançar é assumir ter errado muitas vezes. Esperançar é tentar sempre reparar aquilo que se fez de errado. Esperançar é ser capaz de pedir perdão àquele contra quem erramos. Esperançar é saber que há alguns erros cujos desdobramentos são reversíveis, reconciliáveis, rebobináveis, passiveis de correção. Esperançar é também compreender e aceitar que há outros erros que a vida se encarrega de impermeabilizá-los, de selá-los com o verniz do “irretocável”, e de cingi-los de um caráter inoxidável e inatingível. Esperançar é, sobretudo, perdoar-se. Esperançar é não consumir-se em culpa. Esperançar é ter a serenidade para aprender a conviver e a enfrentar e a elaborar, sem murmurações, comiserações, auto-enganos e auto-piedades, as conseqüências das decisões erradas que tomamos, dos caminhos tortuosos e dos atalhos fáceis por onde andamos, e das sementes erradas que plantamos.

Esperançar é limpar o coração que vai se empoeirando na estrada da vida e ver e sentir na janela da alma o vento que sussurra. Esperançar é ver, já com o coração limpo, a lua minguante preguiçosa de sono que se esconde detrás dos seus travesseiros de nuvens. Esperançar é crer que, tal como o minguar deste boião de leite não é para sempre e logo logo estará cheia, tampouco os temporais são eternos. Esperançar é ver a madrugada, mas saber que o dia logo vem.

Esperançar é, sobretudo, render-se. Render-se ao pianista e reconhecer-se apenas instrumento. Render-se àquele que tem em suas mãos a partitura de cada uma das nossas vidas. Render-se àquele que dedilha as nossas almas na calma de um pianíssimo, ou na braveza de um mezzo-forte oufortíssimo. Render-se àquele que comunica às teclas do piano na demora ou na rapidez de umasemibreve ou quartifusa. Render-se àquele que às vezes se demora numa fermata ou se cala no silêncio de uma cesura, mas que faz toda a orquestra cooperar para o bem de um só compasso das nossas vidas.

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Áquila Mazzinghy é ex-assistente editorial da Ultimato. É professor de Direito Internacional e Direitos Humanos em São Paulo, Belo Horizonte e Porto Velho

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