Terminei meu texto “Música Essencial” assim:

A música é ingrediente da minha receita. Não me refiro àquela que eu toco, não o imperfeito louvor ou a frágil adoração que apresento ao meu Criador (ecos longínquos da harmonia essencial que vibra em mim), mas aquela que me criou e ainda se desenvolve em mim, pelo seu Espírito; aquela da qual eu sou feito.

Entretanto, se não sei “tocar a minha música essencial”, pois essa música é tocada em mim, como se Deus tivesse batido gentilmente o meu diapasão (aquele de forquilha, que fica vibrando um tempão em 440 Hz), acho que Deus deseja que eu aprenda o máximo possível sobre o assunto. Como se quisesse me preparar para brilhar no “grande concerto”. Essa é minha forma de entender o propósito mais profundo dos salmos.

Deixe-me explicar. Você já reparou que os salmos foram feitos para ser cantados? Com direito a acompanhamento de instrumentos? São poesia e música. Mesmo os salmos de lamento e os mais angustiados. Veja, por exemplo, o Salmo 22, aquele que começa assim: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” Sim, o salmo da cruz é encomendado “ao mestre de canto, segundo a melodia”.

Pena que tenhamos perdido muito dessas informações (poesia e música), e ficado apenas com a parte cognitiva deles, com sua teologia, seu ensino. Eles existem, penso eu, para nos ensinar mais do que padrões e estruturas de louvor, de oração, de relacionamento com Deus. Eles foram inspirados para nos ensinar a adorar. Eu diria, voltando às nossa metáforas, que os salmos nos ensinam a “musicar” ao Criador.

Para desenvolver esse pensamento, preciso de uma breve digressão sobre aprendizado de estruturas. Quando um jovem me pergunta como pode aprender a escrever bem, digo-lhe para ler muito. Mas não artigos de jornal ou revistas. E muito menos emails. Digo-lhes para ler bons autores brasileiros. Essa leitura, mais do que informar, forma o leitor. Sem que ele perceba, vai adquirindo estruturas de pensamento e de expressão. Recursos e soluções gramaticais e de estilo. Quem lê muito Machado de Assis acaba absorvendo seu modo de pensar e de expressar seu pensamento. E aí, o português vem bonito, limpo, fácil, bem articulado.

A capacidade de articulação verbal é valorizada nos vestibulares e nos concursos de toda natureza. Descobriu-se que as palavras são mediadoras da realidade. Ser capaz de expressar-se é ser capaz de descrever o mundo, interior e exterior; é ser capaz de comunicar-se; é ser capaz de viver em grupo. Esse profissional é valorizado; esse aluno sabe.

Bem, se a leitura forma em nós estruturas de pensamento e expressão, então os salmos formam em nós estruturas de adoração.

Os salmos moldam nosso coração numa vibração própria da adoração. Ao produzirem ressonância (o nosso coração aprende a vibrar com o do salmista), estão nos ensinando a linguagem do coração. É por isso que os salmos são música: são resultado de um processo emocional; são a voz do coração.

Reparou, leitor, que a arte é pura expressão emocional? Ela está para além da razão. Muitas vezes prescinde da razão; outras vezes despreza-a, pela sua incapacidade de dizer o que está lá dentro. A arte é uma forma de derramamento. E a música é um desses canais. Daí o choro e as lágrimas que sempre acompanham os momentos de manifestação ou percepção artísticos mais intensos.

A adoração tem a mesma matriz. Está sempre ligada a “afetos e misericórdias”. E quando a igreja se reúne, diz Paulo, relaciona-se com hinos e cânticos espirituais (Ef 5: 17-19). Ou seja, a igreja é uma reunião de corações.

Os salmos nos ensinam a linguagem do coração. Adestram-nos na competência da expressão de afetos, tais como gratidão, louvor e adoração. E assim, ensinam-nos sobre nós mesmos, pois aprender a expressar afetos passa pelo autoconhecimento; passa por “olhares para dentro”; passa por conversas com a própria alma (lembra-se de Davi? Por que estás abatida, ó minha alma? Por que te perturbas dentro em mim? Espera em Deus…). Sim, conversas a dois e a três (quando Deus é chamado para a conversa, no secreto do quarto).

Um dia descobriremos que, ao sermos formados nos salmos, estávamos aprendendo a “tocar” a nossa pequena participação na grande sinfonia de Deus. Sim, ao “nos tocar”, com seu “haja”, Deus estava tocando o nosso tema de amor. Mas não satisfeito, quis completar sua obra, ensinando-nos a tocá-lo junto com ele. Mais que isso ainda: estava nos dando a oportunidade de usar da nossa liberdade para lhe tocar uma versão nossa, pessoal, dessa sua partitura. Como se quisesse que o surpreendêssemos com um novo estilo, com uma interpretação ao nosso modo.

Quando vier o chamado, estaremos prontos. Uma trombeta dará o tom, e nós nos “desfaremos” em música e adoração (dá no mesmo, já vimos), como aquela criança, filha de compositor, que chega toda alegre ao pai e diz: “pai, aprendi a tocar o tema de amor que o senhor fez para mim, quando eu nasci. Aprendi a tocar a minha música. Quer ouvir?

 

  1. Pois é Rubem, demoramos muito a entender o voce explicitou em seu texto – Pena que tenhamos perdido muito dessas informações (poesia e música), e ficado apenas com a parte cognitiva deles, com sua teologia, seu ensino. Eles existem! – e acredito que a chave pra tal descoberta chama-se relacionamento.
    Um abraço e muito obrigado pelo texto.
    Deus o abençoe!

  2. Música celestial,voz de Deus, o “som de muitas águas”.. Essa viagem ‘e deliciosa e encanta a minha alma e me leva para dentro do coração, onde posso ouvir alguns acordes, da música essencial que foi escrita pelo meu criador, quando, com propósito de amor, me trouxe ‘a luz. Tal pensamento ‘e incrível demais…desperta sentido de pertencimento…de repente a gente se percebe fazendo parte de uma grande sinfonia, ainda que com simples acordes, porém em sintonia, sob o comando daquele que ‘e o compositor e o regente.
    Obrigada, pelo novo olhar, que suaviza a nossa caminhada.
    Abraços
    Denise

    • Oi, Denise. Um texto talvez mais poético do que teológico. Mas creio que os salmos moldam nosso coração para adorar; e que isso é, ao final e ao cabo, “tocar a nossa música para o Pai”. 🙂

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