Às vésperas do carnaval, a Igreja Católica representa judicialmente contra a distribuição da “pílula do dia seguinte”, e o Ministro da Saúde vai à televisão para dizer que “a Igreja errou mais uma vez, pois a prevenção da gravidez não é uma questão religiosa, mas de saúde pública”. A Igreja reage, dizendo que a Lei de Deus é para todos. Desfecho: juíza determina que a distribuição seja feita, por entender que o método não é abortivo.

Se o ministro tivesse tido tempo para pensar, talvez escolhesse melhor as palavras. Mas o afogadilho precipita os fatos. Por um lado, o arcebispo de Recife e Olinda leva uma questão que acredita ser matéria de fé para um tribunal secular; por outro, o ministro manda-o recolher-se aos seus domínios, sem precisar quais seriam eles.

Penso que o ministro está certo, ao dizer que a orgia carnavalesca é questão de saúde pública. Mas também concordo com o arcebispo, quando sustenta que o assunto tem a ver com Deus, pois envolve a alma humana. Talvez ainda venhamos a saber por que razão ele levou questão à Justiça. Mas desconfio dos pressupostos ocultos do ministro que, certamente, fala por um governo de orientação ativa e passivamente liberal.

E não pensemos apenas em moral sexual, pois aprendemos com o apóstolo Paulo que a degradação humana nunca vem por um pecado só (Rm 1:21-27), embora sempre bata ponto numa cama. A propósito, pesquisa revela que, na novela global Sete Pecados, o da luxúria ultrapassa, em número de cenas, todos os outros seis pecados juntos. Por quê? Palpite: predileção.

Acho que, ao classificar a promiscuidade no carnaval como de saúde pública, o ministro Temporão pensou mais em prevenção do que no conceito de saúde. Por ser pragmático, talvez ele tenha trocado o importante pelo urgente. E o urgente, imagino, é evitar que o índice de abortos clandestinos fuja ao controle; que o número de recém-nascidos achados nos lixos, nos esgotos, nos córregos, seja de proporções epidêmicas; que as famílias das meninas que sairão grávidas ou infectadas dessa “festa popular” empobreçam, e até que o governo tenha que gastar em penitenciárias para receber os “filhos enjeitados do carnaval” de 2008.

O ministro tem estatísticas nas mãos e sabe que, diferentemente da Cultura ou do Turismo, para sua pasta, carnaval é sinônimo de tragédia.

E como ele enfrenta essa ameaça? Distribui, gratuitamente, pílulas e camisinhas aos foliões. E resolve? Bem, concordo, evita o pior, momentaneamente. Mas não resolve, pois não existe camisinha para alma promíscua (nem mesmo as cinzas da quarta feira, sem verdadeiro arrependimento).

Senhor ministro, deixe a Palavra de Deus ajudar. Ouça-a. Se aborto, gravidez indesejada, AIDS, evasão escolar, desemprego etc. não são problemas religiosos, então o que será? As providências de V. Excia. são tão eficazes quanto tratar catapora com esparadrapo.

Já imaginando o que ele me responderia, deixo-lhe um respeitoso alerta:

Tens feito estas coisas, e eu me calei; pensavas que eu era teu igual; mas eu te argüirei e porei tudo à tua vista (Sl 50:21).

Transcrevo, a seguir, um texto publicado no Blog “Pé na África” da Folha Online. Eis o link para o artigo. Somente um detalhe: o presidente da Uganda e sua esposa são crentes.

Aids em Uganda: o moralismo funciona

KAMPALA (UGANDA) – Falei quase nada sobre Aids até agora, o que é uma falha, visto que a doença virou uma marca registrada desse continente.

Então é bastante apropriado que eu toque no assunto aqui, em Uganda. Aids é uma obsessão nesse país, quase uma mania nacional. Por onde você anda, vê centros clínicos, ONGs, igrejas, escolas, com aconselhamento de prevenção ou tratamento para HIV/Aids etc. etc. E placas, cartazes, faixas, tudo que se refere à doença.

De vez em quando é bom ver uma história de sucesso nesse continente, só para variar, e o combate à Aids em Uganda é um sucesso inquestionável. Há 15 anos, cerca de 30% da população tinham o vírus; hoje, são 6,5%.

Enquanto outros países perdiam tempo fingindo que nada acontecia, e até negando que HIV cause Aids (como na África do Sul, onde a taxa é de mais de 20%), os ugandenses agiam para conter a doença. Falar sobre o assunto, assumir o problema e discutir candidamente foi o primeiro passo. Mas teve mais.

Uganda trata a Aids de uma maneira como nós nunca faríamos no Brasil. Uma maneira inusitada, para dizer o mínimo. E assumidamente moralista.

Um exemplo do que acontece por aqui: imagine que você é um oficial do governo e precise traçar uma estratégia para reduzir a incidência de Aids junto a caminhoneiros. Em vários países, esse é um grupo delicado: estão sempre longe de casa, cruzam fronteiras, são cercados por prostitutas o tempo todo. São potencialmente um fator de disseminação da doença. E muitos chegam em casa e podem contaminar suas esposas.

A meu ver, a lógica mandaria que se propagandeasse o uso de camisinhas entre caminhoneiros. Mas veja como é o cartaz do governo de Uganda que vi na sede de uma ONG:
Diz o pôster: “um motorista responsável se importa com sua família; ele é fiel a sua mulher”. O foco não é tentar fazê-lo se proteger quando dormir com prostitutas. Mas tentar convencê-lo, antes de tudo, a não ter a relação sexual. Parece ingênuo, mas o governo acha que funciona. E talvez funcione mesmo.

No Brasil, a ênfase das campanhas contra Aids é no sexo seguro: use camisinha, em outras palavras. Em Uganda, a promoção dos preservativos é apenas a perna mais fraca de um tripé que conta também com a promoção de abstinência e a fidelidade.

O slogan do governo é ABC: A é a inicial de abstinência, B é de “be faithful”, ou seja fiel, e C é para condom, ou camisinha.

Uganda é um país com forte influência das igrejas católica e evangélicas. O presidente, Yoweri Museveni, é, a exemplo de George Bush, um “born again christian”, ou seja, um cristão renascido, que descobriu sua fé no meio da vida. A primeira-dama, Janeth, é ainda mais religiosa.

Não surpreende, então, que o governo coloque tanta ênfase nas letras A e B. Abstinência é direcionada aos jovens, principalmente de menos de 25 anos, idade média em que eles se casam, incentivando-os a se manter virgens até o altar.

O B é dedicado aos casais, pedindo que sejam fiéis. Só em último caso, se a pessoa não conseguir se abster ou for um pulador de cerca contumaz, vem o C: pelo menos use camisinha.

Percebeu a diferença? O enfoque tradicional em vários países, inclusive no Brasil, é centrar fogo na camisinha. Em Uganda, camisinha é um último caso, quase o recurso dos pecadores.

Hoje conversei com representantes de duas ONGs, esperando ouvir algumas críticas à política do ABC. Nada. Aprovam 100%. Há um consenso nacional em torno do tema. Sobra para organizações estrangeiras descerem o pau, dizendo que é irreal esperar que um jovem de 20 anos se mantenha virgem.

Mas os números estão aí, desafiando o que diz a lógica e a convicção de muitos (como eu). São um tapa na cara dos céticos.

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